quarta-feira, agosto 01, 2007

Convidados importantes

Na véspera o marido havia pedido a ela que preparasse "o melhor prato do mundo", pois ele traria alguns convidados importantes para jantar, seus chefes e suas esposas.
A mulher pensou, pensou e resolveu fazer língua, com a receita de um livro. Pensou melhor e tratou de acrescentar outras receitas, a da amiga, a da prima, a da cunhada. Não contente, lembrou-se de uma antiga receita da avó e preparou também.
Arrumou a mesa da sala de jantar com a toalha bordada na Ilha da Madeira, os talheres de prata, os cristais e a porcelana inglesa. Flores e candelabros com velas completaram a beleza da mesa e ela, afastando-se um pouco, virava a cabeça para um lado e para o outro, consertava uma rugazinha invisível, endireitava um garfo desalinhado, lustrava um copo que parecia que tinha uma mancha. Finalmente ficou satisfeita. Estava tudo perfeito!
O marido chegou, aprovou a arrumação, deu-lhe um beijo distraído e foi tomar seu banho para esperar os convidados. Mal teve tempo para isso e eles chegaram.
Apresentações foram feitas, o marido abriu os vinhos, conversas foram entabuladas.
Chegou a hora de servir o jantar. Todos sentados, as travessas fumegantes foram abertas e todos pasmaram. Tinha língua assada, língua frita, ensopada, bolinhos de língua, salada com língua em cubinhos, língua com molho de tomate, grelhada, enfim, de todo tipo.
O marido sorriu amarelo, os convidados ficaram um pouco constrangidos, mas conseguiram elogiar e comeram assim mesmo. As esposas dos convidados se entreolhavam a cada modalidade de língua que se apresentava. A unica coisa que não tinha língua era a sobremesa, um delicioso pudim de que todos gostaram e comeram muito.
Não se demoraram, cada casal procurando um pretexto para se retirar. Despediram-se dela como se ela fosse um tantinho fora do normal...
O marido ficou bastante tempo calado, as sobrancelhas juntas, pensando o que poderia fazer para tirar dos chefes a má impressão que a comida de sua mulher causara. Não sabia como abordar o assunto com ela, sem magoá-la. Então foi perguntar muito delicadamente a ela porque fizera aquilo: tudo língua, língua, língua, até parecia que ela não sabia cozinhar outra coisa.
Ela respondeu que fizera o máximo para agradar a tão ilustres convidados e que pensara no que o marido dissera: "o melhor prato do mundo"! Que outra coisa poderia ser? A língua é a melhor coisa do mundo! É com ela que as pessoas entoam melodias que encantam os ouvidos, é com ela que os professores ensinam coisas maravilhosas a seus alunos, é com ela que oramos a Deus, é com ela que as mães cantam para embalar seus filhinhos, é com ela que contam as mais lindas histórias a eles. Todos conhecem o valor de uma palavra de ajuda, enfim, a língua é a melhor coisa do mundo.
O marido ouviu atentamente e até concordou com ela, mas disse que os chefes e suas esposas não deviam ter compreendido. E participou que iria convidá-los novamente, para que ela mostrasse seus dotes culinários, fazendo outra coisa. Por exemplo "o pior prato do mundo".
A mulher concordou e o marido convidou todos novamente, explicando que ela queria surpreendê-los com outros pratos.
Alguns dias depois, ela arrumou tudo perfeitamente como da outra vez e serviu língua novamente, com receitas diferentes, mas língua de todo jeito.
Depois que todos se foram, o marido quis saber qual era a explicação desta vez.
Ela respondeu que língua era também "o pior prato do mundo", pois leva a calúnia e a desgraça, as brigas e as desavenças, as blasfêmias e os palavrões; e que uma língua afiada pode ferir mais do que um punhal e que pode queimar mais do que um ferro em brasa. Como vê, disse ela, fiz apenas o que você pediu.
Não me perguntem se o marido teve a coragem de convidar novamente seus chefes ou seus amigos, por que eu não sei... Mas se eu fosse ele, daí em diante, levaria os convidados para um bom restaurante...

8 Comments:

At 2/8/07 9:31 AM, Blogger Polemikos said...

Moral desta história : o casal deve se comunicar de forma clara e inequívoca sobre o cardápio .... e outras coisas tambem!!

Bom tê-la de volta. Gostei de seu pequeno conto!

 
At 2/8/07 9:08 PM, Blogger marianicebarth said...

Não é meu conto! É uma história conhecida sobre o bem e o mal que a língua pode causar e que a gente conta às crianças para que aprendam melhor. Você não conhecia?

 
At 2/8/07 10:13 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu tbm não conhecia esta...parábola.
Achei "bene trovata" e muito bem relatada pela dona do blog. Tbm faz muito sentido o fato dos convidados sairem desenxabidos, pois a lingua é um prato, ou muito querido, ou muito detestado. Eu gosto muito. E aí me lembro de uma cena de restaurante: chegam dois amigos, sentam-se, chamam o garçon e um deles pede:
- Quero lingua ensopada.
- Credo, exclama o outro, comer uma coisa que saiu da boca da vaca! Garçon, eu quero um ovo.

 
At 2/8/07 10:45 PM, Blogger marianicebarth said...

Ótima, Timtim! Ri muito...

 
At 3/8/07 8:49 PM, Blogger Antônio said...

Despois há alguns que julgam o mariticídio crime...

 
At 11/8/07 11:13 PM, Anonymous Anônimo said...

Das narrações do Talmude

- "Traga-me o melhor pedaço que encontrares no açougue - dizia um Senhor a seu escravo. Este lhe trouxe uma língua.
- Traga-me - disse-lhe outra vez - o pior pedaço que encontrares no açougue. O servo lhe trouxe de novo uma língua.
- Que queres dizer com isto? - perguntou o Senhor estupefato.
Respondeu o sábio escravo:
- A língua é o que há de melhor e pior no mundo. Se é boa, nada há de melhor; se é maldizente, nada há de pior".

 
At 12/8/07 2:19 PM, Blogger marianicebarth said...

Gostei mais desta, Primacaçula. Diz tudo em poucas palavras. Preciso aprender isso, como ser mais concisa.

 
At 12/8/07 10:00 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu gostei mais da sua história por ser rica em detalhes; veja como os gostos diferem. Acho esta muito concisa demais, sem atrativos.

 

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