terça-feira, julho 03, 2007

Sabedoria da roça


No ano em que nos casamos, trabalhavam para os pais do Nelson duas irmãs, Dona Alzira e Dona Isaltina. A primeira era cozinheira e a segunda, arrumadeira. As duas juntas somavam uns 130 anos, pelo menos. Ninguém sabia a idade delas, porque esse assunto era tabu, mas provavelmente eram muito mais jovens do que pareciam. Chamavam uma à outra respeitosamente de dona e de senhora.
Nelson e eu casados e meus cunhados (Flávio, Maria Eugênia e Vera Lúcia) cursando faculdade em São Paulo, só restara na casa o filho mais novo, Rubens, na época com 12 anos. Passávamos as férias e feriados lá.
Dona Alzira era barulhenta na cozinha, vivia batendo as panelas, parecia de propósito. Era enfezada o tempo todo. Gostávamos de provocá-la só para ver a carantonha que fazia. Suas respostas eram bruscas. Falava o autêntico caipirês da nossa região agrícola-pastoril, os erres brandos bem puxados na língua enrolada e o plural sem o esses finais, além de um Ô!! duro e socado na frente de tudo:
Ô!!... Dona Zélia! Já posso serví o armôço? Os bife já tá tudo frito! Vai isfriá! (ênfase)
— Pode, Dona Alzira. Chame todo mundo, por favor.
Mas Dona Alzira tinha três regras, jamais quebradas:
1ª) nunca subir as escadas, que era território da irmã;
2ª) nunca gritar pelo nome de ninguém “em vão”;
3ª) nunca gritar escada acima o nome de alguém da família.
Então usava um subterfúgio: gritava para sua irmã, a quem chamava de senhora; plantava-se ao pé da escada de mãos na cintura, olhando para cima e mandava ver:
Ô!! Ô!! Ô!! — e quantos Ô!! fossem necessários até a outra atender. A resposta não tardava e logo aparecia lá em cima só a cabeça de Dona Isaltina que, também de mãos na cintura e olhos assustados perguntava:
— O quê que a senhora qué?!
— É pra senhora fazê o favor de chamá os minino tudo pra armoçá, que os bife já tá tudo frito... e vai esfriá!
(ênfase)
— Sim, senhora!
E Dona Isaltina nos chamava de maneira igual, mas falava de soquinhos, respirando curto entre um pedaço e outro de frase:
— Ô!!... Minha ermã... mandô dizê... que o armôço já tá pronto... e os bife... já tá tudo frito. E vai esfriá!! (muita ênfase)
Um dia perguntei às duas porque se tratavam tão cerimoniosamente e responderam:
— Mas tem outro jeito? As ermandade tudo tem que se respeitá!
— Mas por que a senhora nunca chama a Dona Isaltina pelo nome?
— Ué! Nóis num pode usá o nome de ninguém em vão!
Estranhei muito sentindo uma grande admiração. Nunca tinha pensado nisso. E pensei que havia aí uma grande sabedoria. Mas quis entender melhor:
— Mas Dona Alzira, isso de não dizer o nome em vão, não é só para Deus?
— Isso num sei. Só sei ... que nosso pai e nossa mãe sempre ensinou nóis assim! Tratá as ermandade tudo de senhor e de senhora. Numa família é perciso tê muito respeito!! (ênfase).

Que lição, hein? A gente da roça sabe das coisas!

4 Comments:

At 3/7/07 10:03 PM, Anonymous Anônimo said...

Infelizmente é pela falta de pouco respeito que o mundo está "de cabeça para baixo". As crianças pequenas gritam e batem em seus pais sem receberem nenhuma advertência ou uma boa "chinelada no bumbum". O Gil vê crianças de 3 anos interromper os pais quando estão descrevendo os sintomas da doença do filho, com um curto e grosso: "cala a bôca"! Pode???
Falando sobre o seu texto, e o livro como vai? Quero ir na noite de autógrafos!

 
At 4/7/07 2:30 AM, Blogger marianicebarth said...

Ahahahahah! Noite de autógrafos...
Eu também acho que hoje os pais não sabem educar. As crianças gostam de autoridade. Sentem-se mais seguras e confiam mais em pais que se fazem respeitar.
Essas crianças descritas pelo Gil estão crescendo "monstrinhos"!

 
At 4/7/07 1:35 PM, Blogger caos e ordem said...

Os goianos usam muito a expressão "dar conta" com o significado de "conseguir".
Não estou dando conta de comentar os dois blogs, da Nice e do Turini, que dispararam a escrever.
Ainda que o Refulgir tá sem texto novo e eu to fora desses provérbios que achei o blog muito complicado.
O pessoal da minha mãe também tinha esse negócio de chamar uns aos outros de senhor e senhora, eu achava bastante estranho mas vale a pena registrar.
digitou o zecão

 
At 4/7/07 9:30 PM, Anonymous Anônimo said...

Posso estar enganado, Zeca, mas eu diria que nossos tios respeitavam uma certa hierarquia, isto é, os mais novos tratavam aos mais velhos como senhor, senhora. Do tio Dito eu me lembro bem se dirigindo à nossa mãe: "comadre, eu trouxe um queijo pra senhora". Também o tio João se dirigia ao tio Dito, à tia Sílvia com o tratamento de senhor, senhora.
Agora falemos do texto da Nice: tem razão a primacaçula, a noite de autógrafos não pode esperar muito. Eu tbm garanto a minha presença. Que belo texto e ainda por cima com uma rica lição de convivência familiar.

 

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