quinta-feira, junho 28, 2007

TREINANDO A AUDIÇÃO


Olhos fechados, aguçando o ouvido. Dentro de casa, o silêncio.

Fora, o longo pio de um pássaro. Outra vez, bem perto. Mais ao longe, várias séries de quatro pios entremeados de um longo em uma nota que sobe e desce formando um arco de som. Os quatro pios são em duas notas (como do ré do ré... mi?). Deu pra entender? Assim: ♫♫ ♪ ♫♫ ♪ ♫♫ ♪ ♫♫ ♪
Zunido constante do trânsito longe, na Avenida, aumentando e diminuindo. Voz de mulher em comando rápido. E cessa de repente. Alguém martelando alguma coisa de madeira, marteladas de três em três, em série. Os pássaros.

Intervalo de silêncio. Só o trânsito não pára.

Um avião se aproxima, seu ruído desagradável chega em ondas de som entrecortado. Motor de um carro acelerando. O avião, por um segundo. Outro tipo de veículo mudando a marcha. Agora entra ao longe uma serra elétrica fizzzzzzzzzzzzzzzzzzzz... Reforma ou construção? O pássaro em quatro notas e pio longo. A mulher. Trânsito. Latidos agora, mais de um cachorro. São dois, em duas notas alternadas. Um longe, o outro mais longe. Latem sem parar. Um terceiro começa a ganir. Um dos cachorros, o que late mais fino, parece histérico. Agora cessa tudo. O avião. É outro avião.

Outros cachorros, latidos mais graves, mais próximos. O avião, em ondas, outro avião? Minha casa não é rota. O avião se afastando, longe. O problema dos controladores de vôo me vem à cabeça. Flashes das fotos nos jornais, de passageiros deitados, dormindo, no aeroporto de Congonhas. E a Marta Suplicy, em tudo que é piada com sua frase infeliz “Relaxe e goze”... dirigida a eles.

Outro avião. Terão mudado a rota? Outro, quase junto! Isso está ficando perigoso. Quando foi que um bateu a asa na asa do outro que estava parado na pista? Segunda? Terça? Um para e outro se movimentando para decolar? Nunca me dei conta de tantos aviões. Não moro perto do aeroporto.

Um minuto de silêncio e tudo recomeça. Um latido, outro avião passando ao longe calmamente, muito alto Outro motor acelerado várias vezes. O ruído surdo do trânsito lá em cima, na Avenida. Passarinhos variados. Latidos longínquos. Um carro. Novo pássaro em duas notas ♫ ♫ ♫ ♫ repetidas muitas vezes, com resposta igual de outro mais longe. Serão amigos conversando? Um ônibus. Outro avião, este feroz, turbinas a toda. Subindo ou aterrissando? Subindo, acho. O pássaro de duas notas não pára mais, só que agora intercala com uma nota só, interrogativa: ♫ ♪ ? ♫ ♪ ? ♫ ♪ ? ♫ ♪ ? Outro passa voando e gritando em várias notas iguais exclamativas, bem na minha janela ♪! ♪! ♪! ♪! ♪! ♪! ♪! ♪! ♪! ♪! Seu piado vai sumindo rapidamente.

Outro avião. Deus! Está muito barulhento hoje! Este está quase em cima de minha casa, bem baixo, fazendo lembrar o 11 de Setembro. A serra elétrica fizzzzzzzzzzzzzzzzzzzz... Nem parece a minha casa, sempre tão silenciosa...

Agora outro intervalo de silêncio bem-vindo e relaxante, acalmando o sangue.
Lá longe, bem longe, um cachorro late um pouquinho.
A cidade se acalma, mas não pára.
Logo tudo recomeça.
Hoje ainda não ouvi o choro da criança do vizinho.
São Paulo estuante de vida.

Agora paro de ouvir e continuo escrevendo. Abstraio-me de tudo, até o meio dia. Quando os sinos da Igreja de Santo Antonio começam a tocar. Paro e ouço. É uma gravação de Ave Maria tocada por sinos, muito bonita. Todos os dias, ao meio dia e às seis da tarde, os sinos tocam lentamente e é muito gostoso ouvir. Três minutos e vinte segundos, contados no relógio. E, todos os dias, nas duas vezes, os sinos são acompanhados por um coral de cachorros, uivantes...

6 Comments:

At 28/6/07 9:33 PM, Anonymous Anônimo said...

Sensacional! Fiquei preso do começo ao fim. Que final bonito com os sinos!Não sei se eu serei capaz de fazer o mesmo exercício, narrando todos os sons que envolvem a minha manhã, mas vou tentar. Agora, o que me deixou grilado mesmo, com uma pontinha de inveja, foi a capacidade de incluir as notas musicais na narrativa. Cada vez mais quero conhecer pessoalmente a dona deste blog.

 
At 28/6/07 10:00 PM, Anonymous Anônimo said...

Você ficará como eu, impressionado com a simpatia, beleza e sensibilidade.

 
At 30/6/07 11:15 AM, Blogger caos e ordem said...

Inveja, inveja, inveja do começo ao fim.
Inveja pela simples razão de minha audição ter uma pequena perda e não ser capaz de distinguir tantos sons.
Ser otimista é ficar contente pelo que consigo ouvir.
O médico otorrino Dr Gilberto Primo Caçula afirmou que minha perda é pequena e então o aparelho que uso não é suficiente para corrigir a deficiência.
Vou dizendo SIM À MINHA VIDA.
Quanto a incluir as notinhas no texto digitado, é um exemplo de como a gente consegue as coisas quando se interessa por elas. Eu também não sei fazer isso.
Fica uma indagação: se a blogueira está acordada às 3 será que ficou com o fuso horário da Austrália?
digitou o Zecão

 
At 30/6/07 6:45 PM, Blogger marianicebarth said...

Respostas: as notas musicais você conseguem no Word, Inserir - Símbolo: e você procura as notinhas.
Timtim, não acredite na Primacaçula. Tem outro ditado que diz: quem ama o feio, bonito lhe parece...
E Caos, o relógio não está marcando direito, mas estou sim com o fuso horário atravessado, desde a Austrália...

 
At 2/7/07 1:44 PM, Blogger Polemikos said...

A maravilha com que fomos dotados : um sentido que nos permite distinguir distância e direção .... apenas pela diferença de recepção entre os nosso ouvidos (algum engenheiro capaz de calcular o tempo diferencial??!!). Ou então a capacidade de distinguir e reconhecer dois sons simultaneos que nos chegam superpostos? Ou então de poder reconhecer a voz de um amigo que canta num coro?

Depois falam que isto tudo aconteceu ao acaso? Não, não, teve "A"lguem que deve ter planejado e construído isto de modo muito elaborado!

 
At 2/7/07 8:27 PM, Blogger irmãcaçula said...

COM A MAIS PROFUNDA CERTEZA!!!

 

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