domingo, junho 17, 2007

UM METRO E MEIO DE SABEDORIA

Foi desta foto que pintei o quadro

A foto é do dia do meu noivado. Ela sempre se vestia assim. Uma saia azul/cinza e uma blusa sem punhos, de algodão xadrezinho azul, por fora da saia. Feitas por ela mesma e, mais tarde quando já não enxergava mais, por uma costureira, a quem levávamos o tecido. E chinelos daquele tipo fechado, macio, azul marinho. Não queria outro tipo de roupa nem outro tipo de sapato. Era um pingo de gente com uma força espiritual difícil de encontrar, uma bondade e retidão infinitas, uma integridade à toda prova.
Cuidava pessoalmente de "seus pobres", que recebia em sua cozinha, da mesma maneira e na mesma cadeira em que recebia o prefeito Dr. Cyro de Albuquerque ou qualquer pessoa que a procurasse. Se fosse viva hoje, estaria descontente por estar feito estrela na Internet, pois também era profundamente modesta e retraída e não gostava de holofotes.
Em minha infância eu a considerava sábia, senhora de todas as respostas às minhas infindáveis perguntas. Era o meu dicionário, a minha grande médica, a maior conselheira e, principalmente, minha melhor amiga, a quem eu podia contar tudo e esperar compreensão e conselho. Em minha adolescência era a confidente de meus bailes, quando me esperava acordada para perguntar com quem eu dançara. Eu ia direto para o quarto dela, sentava-me num cantinho de sua cama de casal e contava tudo baixinho e entre risos, para não acordar papai. Ela ouvia com os olhinhos brilhantes e eu tinha prazer em contar a ela sobre os rapazes e minhas paquerazinhas. Minha amiga.
E não se cansava de servir a todos os que a procuravam.
Uma vez, de madrugada, ouvimos pancadas aflitas na janela do quarto que dava para a rua: — Dona Juventina, Dona Juventina, por favor me ajude! — Era o vizinho médico da casa ao lado, Dr. José Carvalho, desesperado pois seu filho Rubens, de dois anos na época, com febre alta, estava tendo convulsões, não havia farmácia aberta, não havia tempo para ir à Santa Casa e o pai doutor estava nervoso demais para saber o que fazer. Ela sem titubear correu à casa dele mandando preparar duas bacias com água quente e fria, o que era rápido, pois todas as casas ainda tinham fogão de lenha que aquecia a água o dia todo.
Despiu o menino e o mergulhou alternadamente nas duas bacias, quente e fria, quente e fria, até que as convulsões cessassem. O Dr. José disse depois que ela salvou a vida do filho dele.
Vi muitas vezes quando apareciam os "seus pobres" com tumores ou furúnculos para que ela os espremesse e curasse, ou com berne para que ela os tirasse, puxando aqueles horrores para fora com fumo de rolo ou toucinho, comprado às pressas na vendinha. Nenhum nojo, nenhuma hesitação. Fazia aquelas "cirurgias" com a maior serenidade e competência. Conhecia ervas e chás para tudo e gostava muito de homeopatia. Eu fui criada só com homeopatia, sem médicos. À vezes uma Cafiaspirina. Uma ou outra injeção de penicilina contra amidalite, receitadas por ela mesma. As únicas vacinas que tomei na vida foram a de varíola e a BCG, no ginásio. Mas vermífugos (medonhos) ela me dava todos os anos.
Numa tarde de verão uma das "suas pobres" chamada Maria chegou com a penca de 14 filhos, contando que nada tinham para comer há dias e que estava dando a eles apenas água e sal. Que também o sal acabara e então... tiveram de vir... — Será que a senhora... poderia... arrumar alguma coisa...? — pois o marido estava desempregado. Lembro-me da leve bronca que Maria levou por deixar as coisas chegarem a esse ponto. — Oh, Maria, por que não veio antes? Oh, meu Deus! — e sacudia a cabeça de um lado para o outro — e vocês passando fome! Não deixe isso acontecer mais! — E mamãe alimentou a todos e encheu um saco limpo de pano com pacotes de todo tipo de alimento: arroz, feijão, farinha de milho, café, bolachas, pão, açúcar, sal e ainda algumas batatas, cebolas e alho.
Nunca me esqueço do rosto crestado de sol dessa Maria, casada aos 13 anos e que aos 30, com um filho por ano, parecia uma velha, enrugada e sem nenhum dente na arcada superior, o longo cabelo já grisalho puxado para trás e enrolado num birote, por demais envergonhada por ter de pedir, por demais envergonhada por ter de aceitar. Uma velha aos trinta anos. — Dona Juventina, a senhora sabe da minha vida, a senhora sabe... — Nunca pude me esquecer de suas lágrimas correndo pelas rugas abaixo e de suas mãos tão maltratadas que seguraram a mãos de mamãe com doçura. E das suas crianças descalças, as mais velhas carregando as mais novas, as roupinhas tão rasgadas, remendadas, os rostinhos miúdos morenos de sol, descabelados e assustados como animaizinhos selvagens, todos cheirando fortemente a sol, suor e mato.
E da gorda lavadeira, dos meninos engraxates, dos mendigos e dos bêbados. Todos tinham sempre lá em casa um prato de comida. Um prato para cada dois, quando eram muitos, mas com dois grandes bifes e dois ovos fritos na hora além do arroz e feijão quentinho em cada prato. Dona Juventina, mamãezinha, não era rica, muito longe disso, mas a comida em casa não faltava e quando havia muitos pobres para comer, parece que essa comida se multiplicava.
Ajudou a criar duas filhas daquela Maria, e algumas outras crianças, além de mim. Mas tenho certeza de que nenhuma delas, ou nenhuma outra pessoa no mundo, nem mesmo seus sete filhos de verdade, ninguém a amou mais do que eu.

7 Comments:

At 17/6/07 6:32 PM, Blogger caos e ordem said...

Maravilhoso, um dos seus mais belos textos, talvez o mais lindo e emocionante.
Parabéns, sinto até uma ponta de uma santa inveja.
digitou o Zecão

 
At 17/6/07 7:12 PM, Blogger marianicebarth said...

Muito obrigada, Zeca. Fiquei muito comovida também ao escrevê-lo. É impressionante como as coisas ficam mais vívidas quando a gente está contando e a saudade de uma pessoa desse calibre vem com tudo... Mas tenho mais coisas para contar sobre ela e a enorme influência que exerceu sobre mim.

 
At 18/6/07 9:44 PM, Anonymous Anônimo said...

É dificil escolher, mas eu tbm acho que é o texto mais lindo. Sua narrativa, seus detalhes, seus adjetivos e superlativos... e acabei em lágrimas. Só não tive inveja, nem santa inveja, mas fiquei pensando na minha avó materna (a paterna eu não conheci)e querendo escrever algo sobre ela, mas descobri que pouco convivi. Estou curioso para ver os próximos capítulos e curioso tbm para saber porque vc conviveu tanto com a vó Juventina.

 
At 19/6/07 12:39 AM, Blogger marianicebarth said...

Fui criada por ela, Timtim, desde os 18 dias de idade. Minha mãe adoeceu e meu pai teve dificuldades para criar as 3 filhas. Pretendia levar as 3 para a mãe dele, mas naquele tempo as viagens eram muito longas, as outras irmãzinhas tinham apenas 2 e 4 anos e a mãe dele morava no Paraná. Assim, quando ele passou por Itapê pela casa da vovó Juventina para descansar e fazer todas dormirem e comerem, como eu era apenas um bebê, a vovó pediu a ele que me deixasse com ela por quanto tempo ele precisasse. A história é muito longa e triste, mas resumindo, ela e eu nos "apaixonamos" de tal maneira que acabei ficando por lá até me casar. E sempre pensei que lá é que era o meu lugar.

 
At 19/6/07 9:18 PM, Anonymous Anônimo said...

Nice só esqueceu de falar que sua mãe era prima da minha mãe(D. Esther), segunda filha da vovó Juventina. Porisso em um dos comentários do blog a chamei de "tia"- prima!
Acho também que lá era o seu lugar, tia Marianice!

 
At 19/6/07 9:20 PM, Anonymous Anônimo said...

Que coisas lindas escreveu neste texto aumentando mais ainda o meu respeito e admiração pela vovó!

 
At 19/6/07 9:32 PM, Anonymous Anônimo said...

Depois de tudo isso; depois de tais declarações só me resta exclamar: LOUVADO SEJA DEUS! A VIDA É BELA!

 

Postar um comentário

<< Home