domingo, julho 01, 2007

A Rua do Silêncio


As coisas mudam.
Trinta e um anos se passaram desde que construímos nossa casa.


A rua ainda não tinha calçamento, nem poste em frente ao terreno que compramos.
O que se podia ver era uma rua pequena, de apenas duas quadras. Na quadra de cima havia uma única casa (como até hoje), de frente para a praça, onde podíamos visitar uma das belezas tombadas de São Paulo, a Casa do Sertanista, feita de "taipa de pilão" e datada de 1650. Não tinha cerca, nem muro proibitivo, mas bancos acolhedores sob lindas e velhas araucárias.
Na nossa quadra, somente duas casas na calçada em frente: a primeira, da família da Daisy, mais perto da esquina, térrea, com portas-janelas; a segunda, logo abaixo, da família da Anália, dona dos cachorros mais ferozes que já vi, treinados para atacar e que latiam e babavam, o que apavorava os passantes, mas eram tão bem treinados que nunca pularam a mureta baixa para morder ninguém. Pareciam Cérberos. Os carteiros que o digam...
Na calçada de cá, só havia uma casa lá mais abaixo. E um ar de interior. Os outros terrenos (inclusive o nosso quase na metade da quadra), eram todos terrenos vazios, mas não baldios. Tinham um mato bonito e alto, como capim-gordura, muito verde. O terreno ao lado do nosso, formado por 45 metros de frente, cheinho de árvores grandes, frutíferas, dava muita sombra, com cerquinhas como se vê nas fazendas. Esta rua não parecia pertencer a São Paulo, mas sim a um vilarejo ensolarado e silencioso. Foi nossa primeira impressão e mostrou ser verdadeira.

Naquele tempo morávamos num apartamento muito bom, de três dormitórios na Avenida Rebouças, logo abaixo da Rua Estados Unidos, onde nasceram Rodrigo e Christina e propriedade de meu sogro, seu Jair. Mas, infelizmente, a "aristocrática Avenida Rebouças" (como seu Jair gostava de dizer), “não era mais aquela” que ele conhecera antes do advento da indústria automobilística. Tornara-se um corredor de trânsito com ônibus e caminhões; e o barulho da rua subia pelo prédio e explodia no nosso quarto andar. Impossível ouvir música ou assistir TV no verão, com as janelas abertas. Apenas no inverno o conseguíamos, fechando as janelas. Estávamos ficando muito irritados com todo o barulho. Semáforo na esquina obrigava os veículos pesados a utilizar a primeira marcha em toda a sua potência.
Mas o pior de tudo foi o início da construção do prédio ao lado.
Nosso apartamento ficava perpendicular à Avenida e de frente para essa construção. Às cinco da manhã começavam, primeiro o bate estaca durante muito tempo, depois as marteladas e em seguida a serra elétrica com mais decibéis do que consegue tolerar o ouvido humano. E assim ficávamos entre tudo aquilo: durante o dia o bate-bate e serra-serra da construção, e pela noite toda o barulho do trânsito, pois São Paulo não pára. Era muito ofensivo e desgastante.
Começamos a procurar um outro lugar para morar. Coube a mim a procura e a triagem, mesmo dando trinta e quatro aulas por semana. Mais de seis meses e cinquenta terrenos depois, ao passar com um dos corretores de imóveis pela rua que era do jeitinho que descrevi, tranqüila e silenciosa, fiquei apaixonada pelo terreno que ele mostrou. Proposta feita, compramos o terreno, com a “cara e a coragem” do Nelson, pois não tínhamos o dinheiro. A maior das qualidades de meu marido é a força de vontade e a crença inabalável que ele tem em si mesmo e no Divino, quando quer realmente alguma coisa. O dinheiro foi sendo gerado e pudemos pagar o terreno em um ano, o que foi muito, muito difícil mesmo.
Nesse ano, de 1974 a 75, nosso passeio mais querido era vir visitar o terreno, à noite.
Estacionávamos o carro na calçada em frente, motor desligado, nós dois e os dois filhos maiores. (O Rodrigo era um bebê e a Christina ainda estava a caminho).
Nos primeiros minutos, permanecíamos dentro do carro, vidros abertos, curtindo o silêncio.
Mas logo se ouvia a vozinha fina da Alessandra, com cinco anos, a Matraquinha Viva como a chamávamos, começando uma pergunta:
— Por quê...
— Shshshshsh!... Escute, Alessandra!... — sussurrava o Nelson.
E ela sussurrando também;
— Escutar o que, papai? Não estou ouvindo nada...
— Pois é isso mesmo, Alessandra! Estamos aqui para ouvir o silêncio...
— Aaaaahhhhhh... fazia ela baixinho.
E ali ficávamos, deliciados e emocionados.
Flávio Rubens, mais velho e mais calado, já tinha entrado na onda.
Depois de ouvir o silêncio até bastar ficávamos muito relaxados, menos a Alê, que não conseguia ficar quieta por muito tempo e já começava a suspirar, a morder os lábios, e a mexer pernas e braços...
Então saíamos do carro para olhar o céu negro pontilhado de estrelas. Nelson ensinava as crianças a encontrar o Cruzeiro do Sul, a perceber “A Intrometida”, deslocada do meio, Ensinava como encontrar as Três Marias e dizia os nomes de outras estrelas, aqueles nomes bonitos como Aldebaran, Ontário, Ursa Maior e Ursa Menor, os Anéis de Saturno etc., que ressoavam como música em nossa imaginação. Flávio Rubens, com sete anos, perguntava muito e eu também; e o pai respondia.
Foi quando a Alessandra muito contente decidiu:
— Papai, quando eu crescer, quero ser “estreleira”!
Ríamos e o pai ensinava:
— Astrônoma, Alessandra...
— Aaaahhhh...
Ele contava que alguns astros não podiam ser vistos do nosso hemisfério.
— Eu quero ver as outras estrelas do “mistério”, papai!
— He-mis-fério, Alê...
— O que é he-mis-fério, papai?
Nelson ria, satisfeito e a aula ia longe, as crianças interessadas, sentadas no capô do carro, pai e mãe encostados, todos de olhos no céu.
Curioso, Flávio apontava alguma coisa e brinquei com ele:
— Dizem que não se deve apontar estrelas, porque nasce verruga na ponta do dedo...
— Verdade, mamãe?
— Não — ria eu — os antigos é que diziam. Vamos esperar? Pra ver se nasce uma verruga na ponta do seu dedo?
Ele olhava o dedo, preocupado.
— Filho, não se preocupe, verruga não mata... É brincadeira minha. Não vai aparecer nada no seu dedo!...
E assim ficávamos desestressando ali por mais alguns minutos.

Então suspiros satisfeitos e a volta para o apartamento barulhento da Rebouças, imaginando que logo, logo, estaríamos morando em uma casa gostosa, construída lá,
na Rua do Silêncio.

3 Comments:

At 1/7/07 7:51 PM, Anonymous Anônimo said...

Ufa! Que suspiro gostoso, após a leitura desta crônica primorosa.Embarquei em tudo; me estressei com a barulheira da Rebouças, torci para conseguirem o dinheiro e curti "ouvir o silêncio".
Bons tempos! Com segurança, com paz.
A Ale não se tornou "estreleira", mas é mãe de princesa. Neste momento interrompo o comentário para atender a Lucy, no Skype. Que bom!

 
At 1/7/07 9:13 PM, Anonymous Anônimo said...

Que delícia, Nice ler tantas coisas que nos põe em aflição como morar no meio da barulheira da Consolação ou em êxtase, ao ouvir o silêncio da sua rua! Não podemos deixar ao ler tudo isso de sentir cada sentimento, cada impressão. O que mais adorei foi a aula de astronomia que o "papai" Nelson ministrava! Posso dizer que talvez seja verdade a história da verruga, pois tive meus dedos cheios delas e sempre amei olhar o céu e as estrêlas. Mamãe disse que qdo pequena até tropeçava de tanto olhar para cima! Que pena que hoje poucas pessoas sabem que o céu aí está para ser visto e
admirado, como uma das maravilhas da criação!

 
At 2/7/07 1:46 PM, Blogger Polemikos said...

Ah! Não!

Estou com Alessandra e não abro. Eu tambem quero ver as estrelas do mistério!

 

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