UMA GRANDE PAIXÃO - 1
A primeira coisa que se notava era seu charme.
Ao falar sobre qualquer assunto ela até parecia bonita, muito mais bonita do que era, na verdade. Pele clara, cabelos negros e fartos, levemente ondulados e revoltos que usava pelos ombros, olhos daquela cor verde-mel mutável e indefinível, o contorno da íris bem delineado, tudo sombreado por cílios macios, longos e curvos.
Animada, vibrante, contestadora, suas palavras costumavam prender e subjugar seus interlocutores que não se furtavam de pensar “Como é atraente!” — ou até — “Como é brilhante”!
Gustavo era bonito como somente alguns homens sabem ser. Indiscutivelmente bonito, não admitia isso como uma qualidade. Não era coisa com que um homem de verdade se preocupasse. Detestava quando as irmãs ficavam falando sobre isso, rindo e brincando.
Animada, vibrante, contestadora, suas palavras costumavam prender e subjugar seus interlocutores que não se furtavam de pensar “Como é atraente!” — ou até — “Como é brilhante”!
Gustavo era bonito como somente alguns homens sabem ser. Indiscutivelmente bonito, não admitia isso como uma qualidade. Não era coisa com que um homem de verdade se preocupasse. Detestava quando as irmãs ficavam falando sobre isso, rindo e brincando.
Nada havia de delicado nele. Macho até a raiz do cabelo castanho claro, quase louro, no entanto era tímido. Ficava constrangido ao se sentir observado pelas mocinhas, o que era freqüente. Gostaria muito de poder passar despercebido, mas seus ombros largos e altura muito acima da média o evidenciavam por onde passasse. Deixou crescer o bigode numa tentativa de parecer mais velho ou mais sisudo. De nada adiantou. Alguns homens conseguem ficar bem de bigode ou barba, outros conseguem até melhorar.
Olhos fascinados voltavam-se para ele, seguidos de suspiros e sussurros. Ele enrubescia facilmente, o que o mortificava. Não olhava para nenhuma delas, franzia o cenho e apertava os lábios cheios, o que as meninas achavam totalmente irresistível.
Algumas faziam de tudo para chamar-lhe a atenção, o que piorava tudo para elas. Não que ele não gostasse das mulheres, longe disso, mas nos meados dos anos 30, antes da Segunda Guerra, entre homens e mulheres jovens e casadouros havia como que uma imensa placa de vidro espesso. Uns viam os outros, mas só podiam chegar perto ou tocar-se depois do casamento.
A única que não demonstrou ter ficado impressionada com sua aparência foi aquela moça nova na cidadezinha, Anna.
Era a nova cirurgiã-dentista e não era tão mocinha. Uns cinco anos mais velha do que ele. Ela não gostava de homens bonitos e presunçosos, menos ainda os muito jovens. “São todos uns garanhões insuportáveis, pensam que o mundo gira ao redor deles, como aqueles danados da faculdade, os filhinhos de papai...”
Anna passou por ele uma vez, mas estava tão apressada que apenas registrou em sua mente rápida a presença marcante do rapaz — “Nossa que moço bonito nesta terra de ninguém. Ora, deve ser outro daqueles metidos a besta” — sem dar a ele maior atenção.
Ele passou por ela “Ah, essa é a tal dentista...” e continuaram seus caminhos, fingindo que não se viram.
Ele morava com os pais e irmãos na fazenda e não vinha à cidade muitas vezes. Até que sentiu durante alguns dias uma dor cada vez mais forte num dente. — “Procure a dentista nova, dizem que é muito boa” — disse a mãe.
A macheza toda não foi suficiente para agüentar toda a intensidade daquela dor. E, numa quarta-feira logo cedo, depois de noites sem dormir, seguiu para a cidade e para o consultório.
Ao chegar a vez dele ela teve de se controlar e piscou duas vezes ao vê-lo tomar tanto espaço em seu consultório. Detectou uma sensação diferente que de imediato tentou descartar. “Sente-se, por favor”. Suspirou disfarçadamente enquanto lavava e relavava as mãos. O coração saltava no peito. “Pare com isso, o que lhe deu? É apenas um rapaz, jovem demais! Se tiver vinte e quatro é muito!” pensava ela aturdida. Retomou sua atitude profissional e voltou-se para ele, muito séria:
— Vamos ver, seu rosto está inchado... Abra a boca.
Ele obedeceu docilmente, fechando os olhos. Ela olhou para ele, aprisionado na cadeira, à mercê de pinças e brocas.
“Ele é... ele é... não sei, é... diferente... parece... deve estar com muita dor, deve ser isso.” — pensou, mas tomando seu tom mais profissional, disse apenas:
— Hum-hum, estou vendo, é o segundo molar inferior. Não posso fazer nada agora. Vou receitar um anti-inflamatório e um analgésico e você pode voltar quando o inchaço ceder e não estiver doendo mais. Só então poderei tratar.
Escreveu a receita rapidamente, enquanto o rapaz se levantava. O coração dela deu mais uns pulos. “Nossa, o menino é bonito mesmo... Mas você... você se controle!”...
Ele estava com tanta dor que apenas agradeceu a receita e saiu para a farmácia.
Na segunda-feira seguinte ele já estava no consultório quando ela chegou. Cumprimentou-o muito séria, já se auto censurando pelos saltos e pinotes coronários que não conseguiu evitar “Ah meu Deus eu não estou entendendo... o que é isto”?
Sim, ele era bonito, mas tinha algo muito mais interessante, uma espécie de candura, um olhar aberto e... puro?... Seria possível isso? Ela não sabia, nunca vira nada igual. “É por que é um menino ainda, um jovenzinho... Pare com isso, você é quase uma balzaquiana, quase trinta... uma solteirona que nunca se apaixonou”... Ela sacudia a cabeça de um lado para o outro, indignada consigo mesma.
Chamou-o, ele sentou-se e ela se aproximou, olhando somente para o dente dolorido, evitando os olhos que, aliás, ele fechara. Ela sossegou um pouco.
Conseguiu tratar o canal e obturar aquele dente com toda a competência de que era capaz.
Quando terminou ele abriu os olhos... e olhou para os olhos dela, tão próximos que ele pode ver o mel mudar para verde, com todos os risquinhos da íris, admirou o tamanho dos cílios e a profundidade absoluta daquele olhar. Ele estivera também sob a tortura do perfume embriagador e do calor da pele da moça. Nunca se achara tão perigosamente próximo de uma mulher. Viu de relance pulsar a veia do pescoço dela e mais sentiu do que viu o embaraço da moça, que se afastou rapidamente para o fundo do consultório. Essa espécie de retraimento feminino foi o que ainda mais o interessou, somado a todo o resto.
Pela primeira vez ele se sentia inteiro.
Então, olharam-se novamente. Ele teve a impressão de estar caindo no abismo daquele olhar. Ela sentiu algo assim como uma corrente elétrica e todo o seu ser mudou. Ficaram como que paralisados pela violência de uma emoção jamais experimentada.
A revelação mútua foi como uma implosão de sentimentos.
Num único minuto duas vidas se entrelaçaram, mescladas como dois rios que se encontram a caminho do mar.
Não mais “ele e ela”, mas apenas “um.”
Olhos fascinados voltavam-se para ele, seguidos de suspiros e sussurros. Ele enrubescia facilmente, o que o mortificava. Não olhava para nenhuma delas, franzia o cenho e apertava os lábios cheios, o que as meninas achavam totalmente irresistível.
Algumas faziam de tudo para chamar-lhe a atenção, o que piorava tudo para elas. Não que ele não gostasse das mulheres, longe disso, mas nos meados dos anos 30, antes da Segunda Guerra, entre homens e mulheres jovens e casadouros havia como que uma imensa placa de vidro espesso. Uns viam os outros, mas só podiam chegar perto ou tocar-se depois do casamento.
A única que não demonstrou ter ficado impressionada com sua aparência foi aquela moça nova na cidadezinha, Anna.
Era a nova cirurgiã-dentista e não era tão mocinha. Uns cinco anos mais velha do que ele. Ela não gostava de homens bonitos e presunçosos, menos ainda os muito jovens. “São todos uns garanhões insuportáveis, pensam que o mundo gira ao redor deles, como aqueles danados da faculdade, os filhinhos de papai...”
Anna passou por ele uma vez, mas estava tão apressada que apenas registrou em sua mente rápida a presença marcante do rapaz — “Nossa que moço bonito nesta terra de ninguém. Ora, deve ser outro daqueles metidos a besta” — sem dar a ele maior atenção.
Ele passou por ela “Ah, essa é a tal dentista...” e continuaram seus caminhos, fingindo que não se viram.
Ele morava com os pais e irmãos na fazenda e não vinha à cidade muitas vezes. Até que sentiu durante alguns dias uma dor cada vez mais forte num dente. — “Procure a dentista nova, dizem que é muito boa” — disse a mãe.
A macheza toda não foi suficiente para agüentar toda a intensidade daquela dor. E, numa quarta-feira logo cedo, depois de noites sem dormir, seguiu para a cidade e para o consultório.
Ao chegar a vez dele ela teve de se controlar e piscou duas vezes ao vê-lo tomar tanto espaço em seu consultório. Detectou uma sensação diferente que de imediato tentou descartar. “Sente-se, por favor”. Suspirou disfarçadamente enquanto lavava e relavava as mãos. O coração saltava no peito. “Pare com isso, o que lhe deu? É apenas um rapaz, jovem demais! Se tiver vinte e quatro é muito!” pensava ela aturdida. Retomou sua atitude profissional e voltou-se para ele, muito séria:
— Vamos ver, seu rosto está inchado... Abra a boca.
Ele obedeceu docilmente, fechando os olhos. Ela olhou para ele, aprisionado na cadeira, à mercê de pinças e brocas.
“Ele é... ele é... não sei, é... diferente... parece... deve estar com muita dor, deve ser isso.” — pensou, mas tomando seu tom mais profissional, disse apenas:
— Hum-hum, estou vendo, é o segundo molar inferior. Não posso fazer nada agora. Vou receitar um anti-inflamatório e um analgésico e você pode voltar quando o inchaço ceder e não estiver doendo mais. Só então poderei tratar.
Escreveu a receita rapidamente, enquanto o rapaz se levantava. O coração dela deu mais uns pulos. “Nossa, o menino é bonito mesmo... Mas você... você se controle!”...
Ele estava com tanta dor que apenas agradeceu a receita e saiu para a farmácia.
Na segunda-feira seguinte ele já estava no consultório quando ela chegou. Cumprimentou-o muito séria, já se auto censurando pelos saltos e pinotes coronários que não conseguiu evitar “Ah meu Deus eu não estou entendendo... o que é isto”?
Sim, ele era bonito, mas tinha algo muito mais interessante, uma espécie de candura, um olhar aberto e... puro?... Seria possível isso? Ela não sabia, nunca vira nada igual. “É por que é um menino ainda, um jovenzinho... Pare com isso, você é quase uma balzaquiana, quase trinta... uma solteirona que nunca se apaixonou”... Ela sacudia a cabeça de um lado para o outro, indignada consigo mesma.
Chamou-o, ele sentou-se e ela se aproximou, olhando somente para o dente dolorido, evitando os olhos que, aliás, ele fechara. Ela sossegou um pouco.
Conseguiu tratar o canal e obturar aquele dente com toda a competência de que era capaz.
Quando terminou ele abriu os olhos... e olhou para os olhos dela, tão próximos que ele pode ver o mel mudar para verde, com todos os risquinhos da íris, admirou o tamanho dos cílios e a profundidade absoluta daquele olhar. Ele estivera também sob a tortura do perfume embriagador e do calor da pele da moça. Nunca se achara tão perigosamente próximo de uma mulher. Viu de relance pulsar a veia do pescoço dela e mais sentiu do que viu o embaraço da moça, que se afastou rapidamente para o fundo do consultório. Essa espécie de retraimento feminino foi o que ainda mais o interessou, somado a todo o resto.
Pela primeira vez ele se sentia inteiro.
Então, olharam-se novamente. Ele teve a impressão de estar caindo no abismo daquele olhar. Ela sentiu algo assim como uma corrente elétrica e todo o seu ser mudou. Ficaram como que paralisados pela violência de uma emoção jamais experimentada.
A revelação mútua foi como uma implosão de sentimentos.
Num único minuto duas vidas se entrelaçaram, mescladas como dois rios que se encontram a caminho do mar.
Não mais “ele e ela”, mas apenas “um.”
(continua)
10 Comments:
Esta história tem seu fundo de verdade e continuá-la vai depender dos comentaristas.
Conheci os protagonistas, cuja história foi diferente do que o princípio dela augurava.
Acho maravilhoso seu modo de escrever sobre pessoas, descrever como se sentem, etc ... você devia pensar seriamente escrever um romance.
´tou louco pra saber o resto ...
Será que os personagens são quem estou pensando? Ele era tão bonito assim? Talvez então eu saiba agora porque nunca havia visto uma NOIVA assim!
Os comentaristas devem estar pensando que "pirei" mas vc. sabe do que falo!
Em relação à sua história, serei uma leitora fiel; quando virá a continuação?
Estou escrevendo a continuação. Devo publicar no domingo ou na segunda, pois viajaremos amanhã para ver a D. Zélia.
Este de quem falo era muito bonito mesmo segundo as mulheres da família dele e, segundo os homens, era o mais "aprumado" e "ajeitado" de todos, pois os homens não falam que outros homens são "bonitos".
Essa Ana era muito avançada para a época. Mulher dentista em 1930? Coisa rara...
Daí, consultando a Internet li o trecho abaixo:
"A grande conquista feminina no campo da Odontologia foi conseguir o direito de ingressar na faculdade, pois no final do século XIX havia restrições legais ao ingresso da mulher nas Faculdades de Medicina do Império. Em 1879 um decreto estabelecia que era facultativa a inscrição de indivíduos de sexo feminino, para as quais haveria nas aulas "lugares separados."
Só em 1899, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, formou a primeira Cirurgiã-Dentista do país, Isabela Von Sydow."
Olha, acho que essa tal de Ana não era tão avançada assim.
Aguardo o segundo capítulo.
"Loko é poko". Foi isto que eu vi hoje, esculpido na cabeça de um jovem. Um belo trabalho de um talentoso cabelereiro. É o que eu digo agora, impulsionado pelo comentário do polemikos. Estou mais do que louco pra saber a continuação.
Quero um livro de crônicas, ou um romance, ou que outro nome tenham páginas tão envolventes.
O Shiost vai dizer que estou entusiasmado demais com a Nice. Diga o que quizer, mas apareça com seu comentário, ainda mais que, pelo comentário da primacaçula, o Shiost também deve desconfiar da identidade dos personagens.
Tô loko pra ver o 2º capítulo.
Vejam os horários da postagem do comentário do Shiost e o meu. Enquanto eu pedia que o Shiost aparecesse, o comentário dele estava sendo publicado. Que venha o 2º capítulo.
Os nomes são fictícios...
Essa eh uma historia que eu quero ler! Eu sempre quis saber a verdade das coisas! Espero que eu consiga ler todos os capitulos. Se essa nao eh a verdade eu tomo como, parece muito interessante...
DA FILHA
CHRIS
Essa história contada pela Nice está romanceada como naquela época em que realmente viveram esses personagens bem reais meus parentes bem próximos que conheci pessoalmente.
Senti um aperto no coração pois vivenciei muita coisa que ainda não foi revelada. Foi demais dramática e merecia ser mesmo escrita e feito um filme dessa história. Diva Straub 21/02/08
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