terça-feira, setembro 04, 2007

ÔNIX



Ela era negra. Retinta. Azulada. E tão pequenininha!

Seus olhos verdes enormes dirigidos diretamente para os meus pareceram-me extraordinários, inteligentes e misteriosos. E comunicaram imediatamente uma mensagem estranha, telepática, quase sobrenatural.
Poucas vezes vi um olhar tão perfurante em toda a minha vida.

Tomei-a no colo e senti que se aconchegava dócil e satisfeita, macia como seda. Seu pêlo brilhante e liso atestava saúde, assim como seus grandes e limpos olhos verdes.
Ela semi-cerrou as pálpebras e ronronou, fazendo-me saber que confiava.

Perguntei ao dono da farmácia de quem era.
— Não tem dono — respondeu — Apareceu na porta esta manhã, deixada por alguém.
— Posso ficar com ela?
— Pode, se quiser.

Continuei com ela no colo, já lhe procurando um nome. “Ônix”. Perfeito. Deixada numa porta, abandonada à própria sorte, um bebê... Inteligente, carente e sossegada. Não teria mais que um mês de idade. Estaria com fome?

— O senhor deu leite ou alguma coisa?
— Não, não dei nada.
— Vou levar comigo. Cuido dela.

Eu tinha dezessete anos e morava num pensionato de freiras para universitárias, em meu primeiro ano em São Paulo. Voltávamos da faculdade, Celina e eu. Meu impulso de ficar com a gatinha que me havia adotado com tanta confiança como se eu fosse sua mãe, iria me trazer problemas. Foi o que Celina foi dizendo pelo caminho. Concordei com ela, mas não iria voltar atrás. Sabia que seria um desafio e tanto burlar a vigilância das Madres e da faxineira.

— Você vai ver, elas vão obrigar você a botar a coitadinha na rua.
Você é que vai ver como eu consigo ficar com ela. Com a sua ajuda, é claro! E das outras. Vai dar certo! — Eu sabia que a Celina adorava gatos, tanto quanto eu.

Ao passarmos em frente à quitanda, encontrei uma caixa retangular de frutas, de papelão, jogada na calçada. Numa construção próxima havia um monte de areia seca. E assim construí o banheiro para Ônix.

Chegamos ao pensionato quase na hora do almoço.
No meu quarto, coloquei a caixa dentro da tampa, a areia dentro da caixa e Ônix sobre a areia. Ela compreendeu imediatamente. Cheirou, cavou um buraquinho com suas minúsculas patinhas, virou-se, olhou para o lado recatadamente e fez o xixizinho inaugural do tamanho de uma tampa de garrafa. Depois olhou para a rodelinha molhada, preocupada, cheirou e começou a puxar areia para cima até cobri-la completamente. Cheirou novamente, aprovou satisfeita e olhou para mim docemente, como só os gatinhos pequenos sabem fazer. Novamente senti a comunicação, o carisma.
Peguei-a no colo, cativada.
— Ah! Que gatinha educada você é, Ônix. ÔNIX! Você é Ônix, ouviu?
Ela, muito atenta parecia aceitar.

Coloquei-a na cama, enrodilhada no cobertor, depois de verificar que não tinha uma única pulga. Limpinha e cheirosa como um bebê.

Fomos almoçar e separei disfarçadamente um pouquinho de comida para ela, num copo. Ninguém percebeu. Comeu tranqüilamente.
Na padaria da esquina consegui um copo de leite. No dia seguinte, quando voltei da faculdade, comprei uma escova só para ela que, asseadíssima, já havia “tomado seu banho.” Eu trocava sua areia antes que começasse a cheirar. Jogava fora a “milanesa” que aparecia ali todos os dias. E trazia leite e comida. Esse foi todo o trabalho que ela deu.
As vinte e uma pensionistas se encantaram e ajudavam. Vigiavam a chegada da faxineira e Ônix era cuidadosamente levada para outro quarto, seu banheiro embrulhado e levado para um outro e sempre ficava alguém com ela enquanto eu estava no refeitório ou na faculdade.

As freiras não perceberam. A faxineira não percebeu.
Ônix crescia, alegre e brincalhona, uma criaturinha encantadora. Mas, um mês depois vi que precisava levá-la para Itapetininga. Faria isso no próximo fim de semana. Eu sabia que não seria aceita no ônibus, nem no táxi. Outro obstáculo.
Arrumamos uma sacola de palha, forramos com uma blusa de lã fina e macia, cobrimos com outra, mas o taxista descobriu no final, com o miado que ela soltou. Ficou meio bravo e disse que eu não conseguiria viajar com ela, que a Viação Cometa descobriria e não deixaria. Plantou-me o maior medo!

Comprei a passagem e entrei no ônibus, tremendo, mas disposta a ir até o fim. Alea jacta est!Agora ela e eu estávamos só por minha conta e fui sentar lá no último lugar. Iríamos enfrentar cinco horas de viagem, pois naquele tempo, depois de Sorocaba, a Raposo Tavares era de terra. E ela nunca ficara presa.

Nas primeiras horas tudo correu bem, mas no final Ônix queria sair da sacola, ir ao banheiro, andar pelo ônibus, não sei. Só sei que começou a miar. Pedi ajuda ao rapazinho sentado ao meu lado, de uns dezesseis anos e a quem eu tinha contado tudo. Ele começou a cantar desafinado. Ela miava, ele cantava. Comecei a apertar de leve a carinha dela com meu casaquinho de ban lon para abafar os miados. O rapazinho cantava.

O motorista desconfiou e começou a olhar para trás. Fiquei apavorada, pois todo mundo disse que eu seria posta para fora do ônibus com gata e tudo. O rapaz cantava em falsete. O motorista se contorcia lá na frente. Comecei a cantar também, mas nossas músicas não combinavam e todos começaram a rir. Tinha um velhinho que estava furioso e me fulminava com o olhar. Ele sabia... Ônix miava, eu cantava, o rapaz desafinava de propósito, eu apertava mais um pouco.
Mas afinal chegamos. Ufa!!! Ônix estava quieta. Agradeci muito ao rapaz, peguei a sacola com Ônix e corri até o banco da praça em frente. Abri a sacola e retirei o casaco. Ônix estava molinha e não acordava. Quase morri de susto.
— Meu Deus! Matei a coitadinha? Ônix! Ônix! Acorda, queridinha! Ônix, não faz isso comigo, por favor, acorda! Soprei seu focinho, sacudi suas patinhas flácidas, acariciei — Ônix! Gatinha! Pretinha! Meu Deus, não a deixe morrer, por favor! Colei o ouvido em seu coraçãozinho e estava batendo fraquíssimo, mas estava viva. Criei alma nova.
— Ah, obrigada, meu Deus! Obrigada!
Ela devagarinho começou a voltar a si, mas muito molinha ainda. Coloquei-a com cuidado dentro da sacola e voei para casa. Um, dois, três, quatro quarteirões, corri feito louca. Mamãe ia dar um jeito, Ônix ia ficar boa! Cheguei esbaforida chorando e assustando a todos. Entreguei a gatinha à Mamãe e suas mãos mágicas e compassivas, abençoadas, devolveram a vida e a saúde ao meu bichinho querido que quase matei... Demos-lhe água, leite e muito amor. Ela sobreviveu, cresceu e tornou-se uma charmosa panterazinha negra de olhos de esmeralda.

5 Comments:

At 4/9/07 1:45 AM, Blogger marianicebarth said...

Esta história é verídica. Qualquer semelhança NÂO É mera coincidência!Minha gatinha preta alegrou um mês inteiro de pensionato feminino e fez valer cada minuto gasto em escondê-la das rígidas freiras...
Mas a viagem... Foi um horror.

 
At 4/9/07 8:38 PM, Blogger Antônio said...

Gatos, ora, gatos...

 
At 4/9/07 9:44 PM, Blogger marianicebarth said...

Adorador de cachorros...

 
At 4/9/07 9:44 PM, Blogger marianicebarth said...

Este comentário foi removido pelo autor.

 
At 4/9/07 10:33 PM, Anonymous Anônimo said...

EX Adorador de cachorros é o Shiost.
Que coisa linda! Cheguei a ver esta gatinha maravilhosa. Vc. já havia conquistado o coração da Pri; agora que escreveu isto, nem se fala!

 

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