segunda-feira, setembro 24, 2007

Uma Grande Paixão – II


Durante algum tempo, Anna e Gustavo mantiveram um namoro encantado e inocente, nos moldes daquela época.
A cidade, muito pequena, era quase uma aldeia. Por trás de cada janela, as cortinas ocultavam olhares curiosos. Não era comum que solteironas de quase trinta anos namorassem rapazes mais novos. Era preciso ter muita coragem ou uma paixão acima de qualquer comentário. A língua do povo era afiada e acontecimentos de qualquer tipo, eram raros. Não havia veículos, exceto bicicletas, charretes e carroças puxadas a cavalos ou bois. De vez em quando, passava um caminhão ou um ônibus, naquele tempo chamado de "jardineira". Não havia acidentes ou roubos ou assassinatos. Nada para se falar, nada para causar assombro. Um vazio de emoção.
As mulheres casadas não trabalhavam fora. Homem nenhum admitia isso. “Mulher minha não trabalha fora, eu posso sustentar família sozinho” ― diziam uns para os outros ― “Lugar de mulher é em casa.” “Mulher direita é apenas dona de casa, mãe dos meus filhos” ― rugiam.
Não havia um clube, nem sequer um cinema. Apenas o rádio para o entretenimento das famílias. O boteco para as conversas masculinas. E a igreja para as obrigações dominicais. "A religião é um freio" - diziam os maridos.
E havia o costume de, no fim da tarde, cada mãe de família colocar uma ou duas cadeiras na calçada e sentar-se para olhar os filhos que corriam e brincavam na rua de terra com as outras crianças da vizinhança. Era a grande hora da confraternização. As mães acabavam reunindo suas cadeiras e a conversa em voz baixa começava. Era a hora das fofocas e dos risos abafados. Maldades eram servidas em bandeja. Julgamentos e condenações eram saboreados com avidez. Ninguém escapava. Era preciso ter muito cuidado. "As paredes têm ouvidos"...
Os papais chegavam, tomavam seu banho e se reuniam aos outros maridos.
Durante uma hora ou duas tudo era posto em dia. Quando não havia novidade alguma, as mais velhas faziam crochê ou tricô de acordo com a temperatura, ou trocavam receitas e figurinos, ou mostravam revistas, as mocinhas solteiras bordavam, falavam sobre futilidades ou apenas ouviam as conversas das mães e avós. O relógio andava muito devagar e havia tempo para tudo.
O assunto feminino do momento era o namoro da dentista coroa com o homem mais novo e bonito. Sobrancelhas franzidas ou alteadas, olhares enviesados, sussurros viperinos, todas desaprovavam, as cabeças movendo-se de um lado para o outro.
As avós previam sofrimento, as meninas ralavam-se de inveja: “O quê ele viu nela? Uma velhota de quase trinta anos! Nem bonita é! Desmilingüida! Devia se envergonhar! O que é que ela tem? O que ela pensa que tem? E ele que nunca nem olhou para mim! Nem para mim... Para nenhuma de nós! Orgulhoso! Cheio de si! ” E por aí os comentários ferviam e o veneno espirrava.
Era então que ela aparecia. Vinha pensativa, as faces coradas, os olhos baixos, um semi-sorriso enlevado, narinas palpitantes... Estava em êxtase, pensando nele...
Cabeças aprumavam-se, queixos erguiam-se, sobrancelhas lá em cima, todas calavam-se. Em volta delas a temperatura baixava alguns graus.
De longe, ela olhava a cena, divertida. Sabia que falavam dela, sabia do que se tratava. Suspirou. Paciência. Nada a fazer. Foi chegando, enfrentando os olhares. Os olhos dela, serenos, amáveis. Sentia o veneno que embalsamava o ar. Algumas das mocinhas nem disfarçavam.
Cumprimentou ao passar, algumas responderam um tanto secamente, outras excessivamente melosas. Caçoavam dela, as infelizes. “Pobrezinhas... É verdade que não tiveram chance”... Levantou a cabeça altiva e continuou seu caminho, sem mudar o passo nem um pouquinho. Que pena. Pensava ter feito algumas amizades. Sorriu de leve... Mas virando a esquina já se esquecera delas.
Tinha mais em que pensar.
Ele chegaria no dia seguinte e ela queria se embelezar. Lavaria os cabelos, perfumaria e escovaria cem vezes para que ficassem brilhando e vestiria o vestido novo, de linho branco, para fazer contraste com sua pele e cabelo.
Sabia que estava muito mais bonita desde que o conhecera. O espelho lhe dizia isso todas as manhãs. Ela se surpreendia, pois sempre fora o patinho feio da família, ou pelo menos pensava assim. E agora, que transformação! Estava colorida, viçosa.

Durante o banho de imersão, rodeada de espuma, deixou-se descansar enquanto fazia planos para o dia seguinte. Iria com ele à missa e depois à praça, ouvir a banda no coreto. Depois andariam de mãos dadas, escandalizando a todos ainda mais. Oh! Como era feliz! E como o amava! Perdia até o fôlego ao pensar nisso. Sentia-se magnetizada, cada fibra de seu ser vibrava como um diapasão.
Fechou os olhos e sonhou que ele a estava beijando.

7 Comments:

At 24/9/07 9:48 PM, Anonymous Anônimo said...

Que bela sequência! Está muito melhor que as melhores da Globo. Que venha o 3° capítulo.

 
At 25/9/07 8:34 AM, Blogger Polemikos said...

nem sei como termina mas merece publicar

 
At 25/9/07 10:30 AM, Blogger marianicebarth said...

Nem eu sei ainda como vai terminar. Não tenho certeza se devo contar tudo, porque a história tem vários pontos de vista: o dela, o dele e o "dos outros". Talvez eu queirq optar por colocar os três pontos de vista, mas iria ficar muito comprida. Isto que está aqui é um resumo do resumo do resumo da ópera...

 
At 26/9/07 8:20 PM, Blogger Antônio said...

Tem também o ponto de vista das outras. Aguardaremos com serenidade os próximos quatro capítulos.

 
At 28/9/07 9:41 AM, Blogger caos e ordem said...

Muito bonita a descrição da grande paixão.
Estando certa a teoria que publiquei hoje, essa aparente felicidade deve sofrer altos e baixos, a própria palavra paixão é sinônimo de sofrimento.
Fica a curiosidade sobre a semelhança com a vida real, quem dos seus antepassados percorreu esses caminhos? Sei que um dia vou saber.
Estou de volta no mesmo endereço "segredo-do-zequinha.blogspot.com"

 
At 30/9/07 10:47 PM, Anonymous Anônimo said...

É, as sábias avós, com sua experiência de vida previam sofrimento. Como o Caos colocou, paixão e sofrimento geralmente são companheiros fiéis!

 
At 4/10/07 12:59 PM, Anonymous Anônimo said...

Eh realmente delicioso de ler! As nuances da descricao de sentimento sao geniais! Sempre me lembro de que nos nunca gostamos de ler quando pequenos, e minha mae dizia: "Como? Eu vou ler um livro pra vcs!" E comecava a ler com a mesma paixao que escreve aki pra vcs! Eh praticamente impossivel de nao se apaixonar pela historia!
Filha
Chris

 

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