sábado, setembro 29, 2007

Uma Grande Paixão – III


Em sua casa no sítio, Gustavo terminava seus afazeres no curral. Filho mais velho dos dez, era o braço direito do pai. Cursara apenas o que hoje equivale ao colegial e até ali não pensara em continuar os estudos. Até conhecê-la. Então tudo mudou. Queria ficar à altura da doutora, não mais ser apenas um camponês, um caipira.
O gado já se encaminhava lentamente para o descanso noturno, as galinhas já se empoleiravam. Desarreou e escovou muito bem o cavalo, refrescou-o e soltou-o para pastar, com um tapa carinhoso na anca.
A tarde findava, um sol morno desaparecia por trás da montanha, partículas de poeira dourada dançavam no ar.
Gustavo tirou o chapéu e enxugou o suor da testa com as costas da mão. Recostou-se no mourão da cerca, pensativo. Seu olhar perdeu-se na direção do rio. Iria pedi-la em casamento, estava resolvido. Mas antes devia falar com seu pai sobre o que resolvera. Não ficaria no sítio. Depois de casado, iria para a cidade ajudar Anna no consultório e à noite estudaria odontologia.
Foi caminhando devagar para a casa. Não estava muito certo da reação do pai.
— A dentista? — perguntou D. Ernestina, em geral tão calada e reservada — mas ela é mais velha que você... uma doutora... Com tanta mocinha nova na cidade... do seu nível... — ela observou melhor o filho, notou o maxilar apertado, conhecia muito bem o seu menino — Você já decidiu, não é, meu filho?
— Que história é essa, meu filho? Mulher mais velha? — sondou o pai, testa franzida.
Gustavo expôs em poucas palavras, não era de falar muito. Terminou dizendo que estava gostando cada vez mais da moça e que queria se casar com ela e que idade não importava. A mãe nada disse, só disfarçou um longo suspiro. Não adianta argumentar — pensava ela — seja o que Deus quiser.
“Seu” Francisco não olhara em seus olhos nenhuma vez enquanto ele explicava mais ou menos como a conhecera. Gustavo nem pensou em dizer o que sentia pela moça, nem o quanto a admirava por ser tão independente.
... e além do mais — terminou Gustavo — os pais dela já são falecidos e ela está morando com a irmã mais velha e casada. Peço permissão para trazê-la aqui e apresentá-la aos senhores como minha noiva.
Depois de um longo silêncio o velho Francisco concordou. A moça poderia vir na semana seguinte. A conversa estava encerrada e cada um ficou com seus próprios sentimentos conflitantes. "Seu" Francisco não conversou com a mulher sobre isso e D. Ernestina, olhos fechados, rezava por seu filho, apreensiva. Tentava evitar o pensamento pessimista que se insinuava.
O domingo amanheceu fresco e brilhante. Sol de Abril. Gustavo foi para a cidade e procurou Anna para irem à missa. Achou-a radiante no vestido branco. Ela contou seus planos: depois da missa, ouvir a banda, depois da banda, passear de mãos dadas... Ele sorriu, sentindo vontade de beijá-la. Estava muito, muito feliz. Olhou-a bem dentro dos olhos e disparou, certo do amor dela:
— Casa comigo?
— Mas é claro! — ela respondeu sem titubear.
— Quando?
— Que tal em Agosto?
— Combinado. Vamos falar com o padre depois da missa.
— E com dona Marina, a costureira. Vou mandar fazer um vestido bem lindo.
— E no próximo domingo, você vai conhecer meus pais. E irá como minha noiva. Então beijaram-se longamente, pela primeira vez.
Quatro meses depois, Agosto de 1937, estavam casados.
Ele começou a ajudá-la no consultório e amadureceu a idéia de fazer Odontologia. Nada mais inteligente do que ter um consultório para os dois — dizia ela.
Resolveram mudar-se para uma cidade grande que tivesse essa Faculdade. Optaram por Sorocaba e tudo correu como haviam planejado.
A primeira filha nasceu em julho de 1939 e a segunda um ano depois.
A vida começou a ficar mais difícil com as duas crianças, consultório em casa e o outro emprego de Anna como dentista do Grupo Escolar. Mesmo com a empregada contratada, Anna estava começando a dar sinais de stress e de seu forte temperamento. Andava começando a ter dúvidas sobre a fidelidade do marido. Não podia deixar de perceber os olhares derretidos das mulheres, todas elas, de todas as idades. E não conseguia deixar de pensar que ele parecia estar começando a gostar disso. Continuava tímido, o que tornava as mulheres cheias de atenções para com ele. Principalmente sua própria prima, aquela mais querida de todas, a que mais se parecia com ela, Eva, mais jovem quatro anos e ainda solteira. Tentava afastar essa idéia incômoda. Não sua prima! Não poderia suportar isso!
Passou a observar os dois. Morria de ciúmes ao vê-los trocar idéias e ao notar que "ela" ficava toda corada e toda... sensual?... quando Gustavo aparecia. Com certeza "ela" mudava. De firme e segura de si que era, sua prima ficava até um tantinho sem jeito. E dirigia olhares rápidos e fugidios para Anna. — "Mas não! Não pode ser!" — seu espírito reto e franco se revoltava ante essas considerações. "Devo estar louca! Pensar essas barbaridades de minha priminha... Devo estar louca com certeza"...
Mas o ciúme foi crescendo, crescendo e tomando conta dela. Tinha ciúmes de todas. E dos pensamentos dele. Achava que ele não parecia mais o mesmo. Sentia uma vontade de fugir com ele, fugir de tudo e de todos. Tê-lo só para ela. Lembrava-se de quão carinhosamente ele a tratava quando estivera grávida. Impulsivamente resolveu ter mais um filho.

8 Comments:

At 29/9/07 1:37 PM, Blogger marianicebarth said...

Escrevi e reescrevi quatro vezes este capítulo, sem ficar satisfeita. Não conheço toda a verdade dos fatos, não conheço nem sequer A Verdade, se é que ela existe.
Tento colocar aqui "a Verdade" de cada um. Todos já perceberam, é claro, que esta é a história de meus pais e que entrarei nela a qualquer momento.
Como disse no início, há aqui apenas um "fundo de verdade", pois as opiniões são muitas e não há um consenso. As pessoas não dizem toda a verdade, por várias razões. E as que sabiam de alguma coisa estão mortas. Não há mais para quem perguntar.
Tenho a dizer que contá-la está sendo difícil para mim. Ainda hesito em colocar tudo. Sei que alguns de vocês vão dizer:
— "Então não conte, se é assim tão difícil" — mas por outro lado é uma catarse que estou fazendo. Por que não enfrentar? Para manter um mistério? Para escapar das acusações para com minha mãe e meu pai? Eles já morreram, sofreram muito e estão agora em paz, espero. Não há o que acusar. Tiveram realmente uma grande paixão que os destruiu como casal e destruiu a vida deles junto às filhas como família.

 
At 29/9/07 9:57 PM, Anonymous Anônimo said...

O que posso dizer é que toda história de amor e de paixão tem seus momentos de alegria, de tristeza, de aflição, de alívio....
E nada melhor do que expor o que se sente, o que passou. Aprendemos com as nossas experiências e com as de outras pessoas.
Obrigada por partilhar essa história conosco. Sei que, apesar de não ter sido fácil, com certeza é uma história muito bonita e que nos ensinará ainda mais sobre o verdadeiro amor.
Sei também que, para manter o amor, é preciso manter também acesa a paixão que existe dentro de nós.
Vamos continuar com a história.

 
At 30/9/07 2:30 AM, Blogger caos e ordem said...

Continua muito bonita e bem narrada a história.
A falácia dos contos de fada está sempre nos apanhando.
Quando minha filha mais velha se separou depois de 12 anos fiquei decepcionadíssimo, achando que aquela linda história não devia ter fim.
Hoje sei que foi para o bem dela.
Não se avexe de continuar contando.
Foi lindo e maravilhoso enquanto durou e os descaminhos jamais serão capazes de tirar o brilho e beleza dos primeiros momentos, os primeiros olhares, as disparadas dos corações e tudo o mais tão bem descrito por você.
digitou o Zecão

 
At 30/9/07 10:43 AM, Blogger marianicebarth said...

Sei que passei muito rápido e que faltou emoção no pedaço do pedido de casamento e da resposta dada por ela, que casei os dois bem rapidinho e meio chôcho, mas é que o cerne mesmo da história vai começar agora, com a gravidez e nascimento da terceira filha.

 
At 30/9/07 10:53 PM, Anonymous Anônimo said...

Olha aí a intuição das mães que sabem adivinhar o que poderá ocorrer com a vida de seus filhos!
É, D. Júlia,infelizmente, já que não podemos fazer nada, ainda continuamos assim: Hiper-intuitivas!

 
At 30/9/07 11:01 PM, Anonymous Anônimo said...

Creio que aqueles romances que a mamãe gostava de ler, e espero que volte a gostar, são bem piores que o livro que está escrevendo. Parabéns! Vivenciei cada linha narrada com muita emoção!
O "Amor" é lindo, principalmente quando nos apaixonamos perdidamente por uma pessoa! É esse sentimento passional que nos move a cada instante: por ele respiramos, por ele vivemos! Todos nós passamos por isso e como foi bom!

 
At 30/9/07 11:51 PM, Anonymous Anônimo said...

Que narradoramagistral! Prende a gente até nas vírgulas! E, além de tudo, ainda uso o comentário para aguçar mais a curiosidade da gente.
Vou correndo ler o IV capítulo.

 
At 4/10/07 1:14 PM, Anonymous Anônimo said...

minha mae conta uma historia como ninguem! Voces estao tendo uma minuscula demostracao do que ela eh capaz! Eu convivi com ela por 28 anos e sempre disse que ela deveria escrever livros, que ficaria Milionaria com eles! MAS ELA SEMPRE MUITO HUMILDE, ah nao nao sou escritora, ja estou muito velha...HAHAHA! Espero que esse blog ponha em sua cabeca que sim, pode e deve escrever mais para o nosso prazer!
filha
Chris

 

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