segunda-feira, outubro 01, 2007

Uma Grande Paixão - V

Nada sei sobre meus primeiros dezoito dias de vida. Posso imaginar apenas, pelo que já contei aqui. Imagino que minha pobre mãe não teve leite, que meu pai mal esperou que ela ficasse bem, para combinar com o tal médico a internação. Imagino também que ela ignorava isso tudo.
Suponho que o médico a tenha convencido de que ela precisava de um tratamento apropriado numa clínica de repouso, o que lhe permitiria melhorar mais depressa para voltar à sua vida normal. Suponho que foi usada com ela uma linguagem médica adequada a seu grau superior, porque ela aceitou aparentemente o tratamento e a internação. Suponho que meu pai tenha usado com ela de todos os meios ao seu alcance para fazê-la acreditar que tudo ia ficar bem entre os dois e com as três crianças. E isso era tudo o que ela desejava.
Eles a internaram em uma clínica de São Paulo, onde ela se deixou ficar docilmente, por três meses, descansando e esperando dia após dia que seu grande amor voltasse para buscá-la. Medicamentos ajudaram e ela passou a sonhar.
Sonhava que estava em casa com as filhas. Mal conhecia o novo bebê, que não pudera acompanhá-la. Sofria muito com isso. Só quem é ou já foi mãe pode entender a ligação absoluta que une uma mulher ao bebê que acabou de dar à luz. Mas ela tudo aceitou porque Gustavo, tão amado, explicou tão bem. Ela o sentiu seu novamente, que felicidade. Ela tinha imaginado, que louca, tudo aquilo, que bobagem! Ela pediu a ele perdão pelas barbaridades que havia pensado e ele magnanimamente a perdoara, como era bom! Ele a beijara, oh, tão docemente, e a abraçara, passando aquela mão querida por seu rosto e lhe dissera que a amava só a ela, só a ela!... E então, que felicidade, ele a carregara e a deitara na cama e se deitara ao lado dela, acariciando-a e lhe dizendo palavras de amor e de carinho e que ela precisava, precisava muito ficar boa, voltar a ser como era antes, antes de toda essa confusão, que ele, o querido, precisava dela, precisava de seu amor e ela adormecera tão feliz, tão delirantemente feliz...
E agora estava nessa clínica submetendo-se “voluntariamente” a todo aquele tratamento horrível, mas se era por ele e pelas filhinhas ela o faria de todo o coração.
Gustavo voltou para Sorocaba e vendeu o consultório. Conseguiu vender tudo por um preço irrisório para um dentista recém-formado. Pegando o valor da venda, colocou seu plano em ação: levar as três crianças para D. Ernestina criar. A viagem levaria alguns dias, tinha de ir parando, por causa das crianças e, principalmente do bebê, que só chorava. Resolveu passar por Morro Azul, na casa dos tios e fazer uma parada lá. Decidiu fazer a viagem de trem, pelo conforto do vagão-restaurante, onde as meninas comeriam e poderia mandar esquentar a mamadeira para a menorzinha. Chegou à casa dos tios exausto e aturdido com o choro da pequenina, toda molhada, que tanto se mexia.
Entregou-a à Tia Hermínia, que abriu um enorme sorriso para a chorona, pegando-a no colo e embalando-a até o bebê parar de chorar.
— Coitadinha, está toda molhada! Como se chama?
— Mariana.
— Você tem fraldas? Vou trocá-la. E a mamadeira?
— Acabou, já tomou a que eu trouxe.
Tia Hermínia chamou a empregada, Idalina, e mandou-a correndo à farmácia comprar uma chupeta, enquanto preparava uma mamadeira de leite de vaca para a recém-nascida magérrima, “pele e ossos”, pensava ela.
— Venham, crianças, há leite para todas. Gostam com café? E um pãozinho com manteiga? E já foi movimentando todo mundo em torno do grande fogão de lenha, sempre pronto e quentinho. Idalina voltara e já puzera a mesa da sala para o lanche improvisado.
A mamadeira ficou pronta e a chorona pôde mamar, mas Tia Hermínia logo percebeu algo errado. O bebê não conseguia mamar tudo.
— O estômago está muito pequeno, ela não consegue... pobrezinha. Por isso está tão magrinha... Carlota e Dina comiam pouco, também e, coisa estranha, Dina tomava conta da Carlotinha. E o pai... coitado, parece que está carregando o mundo nas costas...
— Gustavo, você vai ficar uns dias aqui, nem pense em ir embora assim. Como está Anna?
Ele contou, depois de mandar as meninas para o quarto. Disse que a situação estava bem ruim e que estava pensando seriamente em separar-se da mulher. Não acreditava mais que o casamento pudesse continuar. Disse também que Anna, antes da última gravidez saía e se divertia, ia a bailes e dançava, largando as crianças com ele. E que depois se enchera de ciúmes doentios, começara a acusá-lo de andar atrás de mulheres, que tinha ciúmes até... até de Eva...
— Tia Hermínia ficou horrorizada.
— O que você está querendo dizer? Que Anna...
— Anna está meio louca, Tia Hermínia, e eu não estou agüentando mais...
— Não é possível, Gustavo! Geniosa ela sempre foi e sempre adorou bailes, mas daí a você me dizer que...
— Tia, estou querendo dizer que nem sei mais se esse bebê é meu...
Tia Hermínia tampou a boca com a mão.
— Gustavo! Eu não acredito! Não posso acreditar!

Tio Pedro, surdo de um ouvido, "fazia concha" com o outro:
— Como é? O que ele está dizendo, Hermínia?
Tia Hermínia explicou "de menos": — Espere um pouco, depois eu falo.
Isso era muito grave naquele tempo. Ainda hoje é. Mas naquele tempo, a mulher que era acusada pelo próprio marido, estava perdida, não valia mais nada.
— Gustavo, você não pode estar falando sério!
— Tia Hermínia, Anna andava fora de si. A senhora precisava ouvir as coisas que ela me falava! Chegou a dizer que "essa criança na barriga não era minha"... Fiquei quase louco! Depois ela voltava atrás e vinha pedir que a perdoasse, que não era verdade... Mas realmente, não vejo como continuar com ela...
— Gustavo, você tem certeza?
— Não, tia, não tenho...
— Mas então...
Ele se calou, abatido e exausto.
— Você agora vai descansar. Fique aqui com as crianças hoje, amanhã, quanto tempo quiser. Pode deixar que eu cuido das meninas. Amanhã você estará melhor e vamos conversar seriamente sobre isso.
Baixou os olhos para a criancinha dormindo em seu colo e sentiu uma pena tão grande, tão intensa e uma vontade tão forte de fazer alguma coisa por ela, por todas elas, que foi como uma tenaz de ferro lhe apertando o coração.
Gustavo passou a noite, mas no dia seguinte participou aos tios que iria seguir viagem para a casa da mãe, D. Ernestina, lá no Paraná.
Tia Hermínia pediu a ele para deixar a bebezinha até que ficasse mais forte.
— A viagem é muito longa, Gustavo, e ela não vai agüentar...
— Essa eu posso deixar com a senhora para sempre, se quiser.
Tia Hermínia ficou chocada e sentiu algo muito dividido: uma enorme alegria e uma profunda tristeza. Alegria por ficar com a criança mirrada, que ficara tão calma em seu colo e tristeza pela fácil rejeição do “pai” que não se importava com a frágil criancinha. “Talvez... talvez... ele não seja mesmo o pai... mas... se for... não merece ser... Mas que coisa, um moço tão bom... Nunca poderia esperar isso... Coitada da Anna... e coitadinhas das meninas...

10 Comments:

At 1/10/07 9:57 PM, Anonymous Anônimo said...

Nice, está bem produzido demais, mas começo a temer por você. Como deu conta de produzir tão rapidamente este capítulo?! Claro que estou curiosíssimo, mas talvez seja melhor ir mais devagar, dar mais tempo a si mesma para assimilar tanta emoção. Comente vc mesma, para acompanharmos suas reações.

 
At 1/10/07 10:14 PM, Blogger marianicebarth said...

Este foi melhor do que o quarto, em que eu não me resolvia se contava ou não toda a verdade, a vergonha, a traição, as calúnias, o sarcasmo das pessoas, a pecha de ter sido filha de uma "louca" que nunca o foi, na verdade, de ter sabido sempre que a casa em que eu morava e em que fora tão bem acolhida não era a minha casa, que a "Mamãezinha" que eu adorava não era a minha mãe de verdade, que o pai que diziam que era tão bonito e bom, não me quisera, enfim, uma vida sem dono e sem raízes, mas mesmo assim, devo à Mamâezinha minha sanidade e devo à Edna, a prima "perigosa", tudo que sou e tudo que tenho de melhor, pois ela cuidou de mim como se fosse uma mãe, me presenteando com livros e cursos e a faculdade, pagando tudo, esforçando-se e dedicando-se totalmente.
A vida é interessante e digna de ser vivida. Se você me perguntar se sou feliz, responderei que sim. Poderia ter tido outra, junto à minha mãe verdadeira que teria sido infinitamente pior, pois você verá nos próximos capítulos o que aconteceu a ela. Sou feliz por ter tido Mamãe Juventina, Papai Jango e todos os filhos deles como "irmãos" e agradeço a Deus por isso. Sou sortuda!
Um beijo para você.

 
At 2/10/07 8:03 AM, Anonymous Anônimo said...

Hoje pensei, vou acompanhando para ver se a história tem um final feliz.
Tolo pensamento pois na vida real não haverá final, com os descendentes que vieram do casal Ana/Luis.
As evidências são de que os descendentes tiveram vidas menos acidentadas e dramáticas que o casal de dentistas.
Fica a curiosidade se o Luis chegou a se formar em odontologia.
A sugestão do Timtim de escrever capítulos mais curtos terá a grande vantagem de curtirmos durante tempo mais prolongado a interessante saga.
digitou o Zecão

 
At 2/10/07 9:57 AM, Blogger marianicebarth said...

Zecão
Acho que o Timtim não quis dizer exatamente isso, de os capítulos serem mais curtos, mas de que eu dê "mais TEMPO a mim mesma para assimilar tanta emoção".
O que tenho a dizer a vocês é que tive toda a minha vida para assimilar toda a emoção em que esses acontecimentos me envolveram, assim como às minhas irmãs; e também ao que tudo o que ocorreu causou à Ana e ao Luiz como seres humanos falíveis; e, ainda e principalmente, o formidável estrago que uma "grande paixão" pode fazer.

 
At 2/10/07 7:37 PM, Anonymous Anônimo said...

É isto mesmo, Nice, quando eu falei em tempo para assimilar as emoções,pensei o que vc revelou: pela vida teve tempo para colocar as coisas nos seus lugares. Mesmo assim, na hora de tornar público tantas ações, tantos comportamentos... Admiro sua força. Creio mesmo que o motivo nobre de prestar homenagem à Ana e outros personagens dignos desta história, lhe dão ânimo e inspiração para continuar.

 
At 2/10/07 10:11 PM, Blogger Antônio said...

Gostaria de saber a história dos irmão também. Vale um capítulo?

 
At 2/10/07 10:21 PM, Blogger marianicebarth said...

Você que dizer os "irmãos" filhos de Mamãe juventina? Valerá um capítulo, ou mais de um, com certeza, ainda mais a seu pedido...

 
At 2/10/07 10:42 PM, Blogger marianicebarth said...

Esqueci de responder ao Zeca se o Luiz se formou. Sabe que eu não sei? Como ele continuou clinicando depois da separação, suponho que sim. Mas nunca me ocorreu perguntar isso.
Penso que os cursos não eram tão extensos e compridos como agora, pois a Primacaçula encontrou o livro de poesia que Ana escreveu, onde no final ela conta que "ingressou na Faculdade de Odontologia de Itapetininga aos 15 anos, transferindo-se posteriormente para S. Paulo, onde concluiu o curso aos 18 anos. Especializou-se mais tarde em odontopediatria. Prestou concurso e foi admitida no Departamento de Assistência ao Escolar", tendo trabalhado em Grupos Escolares até a aposentadoria aos 70.
Naquele tempo os estudos iam só até a sexta série, se bem que estudavam MUITO mais do que hoje. Tinha até grego e latim, além de francês e outras matérias. Vovô Jango é que contava sobre isso. Ele era um sábio, um Professor Pardal, inventor e interessantíssimo.

 
At 4/10/07 8:08 PM, Anonymous Anônimo said...

Em tudo isso que escreveu, muito triste e comovedor por sinal, quase consegui ver o coaração da vovó dividido entre o amor, a surpresa e principalmente a compaixão! Que linda!

 
At 10/10/07 3:44 PM, Anonymous Anônimo said...

Nice, estou recomeçando a leitura hoje.
Percebo que está sendo como um desabafo. Não guarde nada aí dentro. Tudo o que precisar colocar pra fora, coloque.
A história é muito triste sim, mas diante de atitudes como a que acabou de descrever, percebo que não será de tudo ruim.

 

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