terça-feira, outubro 02, 2007

Uma Grande Paixão - VI


Gustavo partiu para o Paraná levando as duas meninas para a casa de meus avós. Dina se lembra do sítio entre as montanhas, das vacas e do cheiro de esterco, do carinho com que foram recebidas e onde ficaram por mais de um ano.
Eu fiquei com Tia Hermínia, que me amou como se fosse sua própria filha e que me fez sentir sempre muito querida e especial.
Ela se preocupava com minha falta de apetite, pois eu estava sempre abaixo do peso, mas acima da altura. Tinha dificuldade para comer e não engordava.

Na clínica, Anna seguia o tratamento.
Nos dias de hoje, ela não precisaria ser internada, pois a Psicologia e a Psiquiatria desenvolveram técnicas, medicamentos e rótulos para a Depressão Pós Parto, stress, TOC, Síndrome do Pânico e um mundo de outros problemas a que as pessoas estão sujeitas. Hoje, ninguém está livre de apresentar alguma dessas coisas e a procura de um profissional ou mesmo de uma clínica de repouso não desdouram ninguém. Todos estamos no mesmo barco.
Mas naquele tempo, ter sido internada era uma barra muito pesada a ser enfrentada. A palavra "louca" entranhava na carne da pessoa assim considerada e uma internação por esse motivo tornava-se como um cartaz na testa da infeliz criatura.
Dois meses se passaram e Anna não recebia nenhuma notícia do marido nem das filhas. Ela começou a se impacientar e a demonstrar novamente nervosismo e irritabilidade. Os médicos aumentaram os medicamentos. Havia também outro problema: Gustavo não aparecia para efetuar os pagamentos. Através daquele médico que indicara a clínica, conseguiram o endereço dos pais de Gustavo e o chamaram para resolver a situação. E, três meses depois de ter entrado, ela saiu, nos braços do marido.
O que se segue, ela me contou quando eu já estava noiva. Disse que ele a abraçou, beijou e que um táxi estava esperando na porta da clínica. Nesse táxi eles seguiram. Ele deitou a cabeça dela em seu ombro e acariciava seus cabelos, falando baixinho em seu ouvido o quanto sentira sua falta, o quanto a amava, que suas filhas estavam esperando por ela, ansiosas e que ele a estava levando para lá.
O coração dela explodia de alegria e antecipação pelo reencontro, perguntava de cada uma das filhas e do bebê que deixara com 15 dias, como estava, como era, se era bonita, se ele tinha alguma foto para ela ver e ele a acalmava, chamando-a de “Meu amor”.
— Tenha calma, querida, meu amor, você está indo para lá, onde elas estão...
Então ela queria saber dele, o que tinha feito esse tempo todo, se a empregada estava dando conta da casa e das meninas, se o consultório ia bem sem ela, se ele estava sobrecarregado de trabalho e ele respondia que tudo ia bem.
Depois de um tempo, quando o táxi parou, ele a soltou. E ela viu que estavam dentro de muros altos e à distância ela via um prédio grande. E que uns funcionários de avental branco se aproximavam.
— O que... o que é isso? — estranhou ela — Onde... onde estão as meninas?
— Aqui é onde você vai ficar... Não posso mais pagar a clínica e os médicos mandaram trazer você para cá...
— Para cá... o que é isto aqui? O que está acontecendo?
— Você precisa entender, tem que aceitar... É o Juqueri...

Ela contou que ao compreender, o choque foi tão violento que ela se comportou como uma verdadeira demente, olhos arregalados e gritando que não era louca, que era perfeitamente normal. Partiu para cima do marido, implorando que não fizesse isso com ela, pelo amor de Deus, você disse que me ama, você me enganou, você me enganou para eu não perceber que estava me trazendo para este lugar, meu Deus, o que você é? E lutava e batia nos enfermeiros que a seguraram e levaram para dentro do prédio onde estavam os médicos, que lhe injetaram alguma coisa muito forte, pois ela perdeu as forças e logo os sentidos.

Acordou no chão de uma cela acolchoada, sem saber quanto tempo se passara, e quando os pensamentos começaram a se focalizar e se lembrou de tudo, ao tentar se levantar percebeu que estava amarrada numa camisa-de-força... "Não, isso não pode estar acontecendo!"
Não conseguia nem gritar. Não tinha forças. Sua voz saía rouca, parecia de outra pessoa. O coração entrou numa dança frenética e ela ficou inundada de suor. A respiração lhe faltou e ela pensou que ia morrer ali mesmo. Até desejou isso. A realidade era por demais cruel.
Ela começou a pensar na viagem de táxi e no marido falando doçuras em seu ouvido e sentiu uma dor tão intensa e dilacerante que parecia impossível de suportar. Não podia pensar, não conseguia acreditar. E começou a chorar, presa e impotente, enganada e desesperada. E então rezou e pediu a Deus que a ajudasse, se é que Ele existia... Logo entraram os enfermeiros e a sedaram novamente.
Assim os dias foram se sucedendo, um depois do outro, depois do outro. Ela acordava e se desesperava, gritava e ora chamava Gustavo, ora clamava por Deus. Mas quem aparecia eram os enfermeiros e seus odiosos remédios que lhe tiravam a consciência.

A dor imensa da perda, insuportável, foi se transformando em ódio, num ódio tão intenso quanto fora seu amor. E isso, por incrível que pareça, foi despertando sua capacidade de pensar. Finalmente soltaram-na, avisando que ao menor sinal de rebeldia ela seria colocada em camisa-de-força novamente. Ela disse a eles que não repetiria o espetáculo, que já estava bem calma. Começou a levar a vida “normal” naquele antro de horrores e ficou sabendo que estava incomunicável.
Começou a pensar que ficaria ali para sempre, se não se comportasse com inteligência. Arquitetou um plano: agiria com tanta segurança e docilidade que não teriam como conservá-la lá. Colaboraria com as enfermeiras e procuraria conversar com os doentes menos graves e até tentaria ajudar em alguma coisa. Tinha de parar de ingerir os remédios fortes para que sua mente se dasanuviasse. Pedia ajuda o tempo todo a um Deus de Misericórdia que devia estar em algum lugar, em algum céu distante. Tinha de sair dali, custasse o que custasse. Pelas filhas e por ela mesma.
E ele... aquele inqualificável... ah, ela o amaldiçoava com toda a força do coração.

9 Comments:

At 2/10/07 7:26 PM, Anonymous Anônimo said...

Que bela narrativa! Quanto sofrimento! Fiquei emocionado com a revelação do Juqueri.
Se puder, de vez em quando, em alguns capítulos, cite alguma data (nem queseja por estimativa) para facilitar pra gente se situar.

 
At 2/10/07 9:23 PM, Blogger marianicebarth said...

Citei a data de meu nascimento, em março de 1943, dia 24. Ela consentiu ser internada na primeira clínica, paga, logo depois que nasci. Eu deveria ter alguns dias. Três meses depois, em Junho de 1943, aconteceu essa desventura que contei aqui. Esse nome até hoje me assombra, Juqueri. Ninguém merece, não é mesmo, Timtim? Nem os loucos de pedra...

 
At 2/10/07 9:35 PM, Blogger marianicebarth said...

Tenho dúvidas sobre os motivos de Luiz. Terá ele sido mau para ela, se todos dizem que era tão bom? Terá sido bem verdade isso que ela me contou? Terá o Luiz sido orientado erradamente pelos médicos? A ponto de interná-la contra a vontade numa instituição tão horrenda como é o Juqueri? Teria querido livrar-se dela para sempre enterrando-a viva nesse inferno, de onde ela jamais sairia se não tivesse sido inteligente e forte o bastante para isso?
Teria eu aguentado isso tudo que ela suportou?
Teria você? Ou algum de nós?

 
At 2/10/07 10:13 PM, Blogger Antônio said...

Quer dizer que ela conseguiu sair. Bem, este é próximo capítulo, eu acho.

 
At 3/10/07 10:37 AM, Blogger caos e ordem said...

Aprendi recentemente que quando existem versões de mais de uma parte, nenhuma é totalmente verdadeira.
Que Dona Ana sofreu muito, muito é inegável.
Será que é possível saber as razões e motivos do seu Luis?
Que lucidez de ter a idéia ter um ótimo comportamento, único meio de conseguir a abertura das portas.

 
At 3/10/07 4:41 PM, Blogger marianicebarth said...

Sobre o Luiz, Caos, você verá em capítulo posterior, mais para a frente um pouco.

 
At 4/10/07 2:02 PM, Anonymous Anônimo said...

O sofrimento eh realmente muito grande...Choro ao ler as pavras de amor e a revelacao da traicao e o Juqueri...Sinto uma coneccao com essa mulher forte que foi minha Avo.
Filha
Chris

 
At 4/10/07 8:17 PM, Anonymous Anônimo said...

Depois de ler este capítulo acredito ainda mais no que lhe falei ao telefone! ´
Que lindo o que sua filha escreveu!

 
At 10/10/07 3:52 PM, Anonymous Anônimo said...

Inexplicavelmente tocante. Quanta traição. Quanta decepção. Imagino que manteve a fé e a esperança dentro dela.

 

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