quarta-feira, outubro 03, 2007

Uma Grande Paixão - VII

Estou contando a história com os retalhos que conheço. São tão poucos... Para costurar essa colcha, tenho de usar bastante imaginação. Depois de escrever cada capítulo, releio e vejo que faltam muitos detalhes. Mas como isto é apenas o resumo, deixa estar.

1944
No capítulo anterior, Anna estava colocando em ação o plano arquitetado de se comportar direitinho. A bem da verdade, não sei em que momento ela teve essa idéia, se foi logo no começo ou bem mais tarde. O que sei é que ela ficou lá por doze meses inteiros. Tremo ao pensar na sua luta entre sentimentos de saudade e amor por suas crianças, ao mesmo tempo em que via brotar e crescer um ódio mortal pelo marido, tudo somado à imensa agonia de estar presa em uma situação tão absurda e ainda ter de dominar tudo isso. Posso imaginar as ondas tsunâmicas de sentimentos contraditórios que invadiam seu coração e, pondo-me no lugar dela, não sei se minha mente teria sobrevivido intacta. E a dela? Suponho que também não.
Hoje, quando penso um pouco, chego à conclusão de que foi o ódio que a salvou, pois é o único sentimento tão forte quanto o amor.
Disse-me ela que depois de muito tempo seus esforços começaram a ser recompensados. Contou que havia uma enfermeira mais bondosa com quem conseguia conversar e estabelecer uma espécie de 
tênue amizade. Contou a ela o seu drama e a enfermeira a ouviu com atenção. Essa mulher emprestou a Anna um batom vermelho e um pedaço de papel, na hora do banho vigiado. Ela mal teve tempo de escrever um curto bilhete contando onde estava e colocando o endereço da sua irmã mais velha, minha tia Júlia, terminando com um apelo desesperado: Pelo amor de Deus, TIRE-ME DAQUI!
Anna se dizia eternamente grata à enfermeira, que fez o enorme favor de esconder o bilhete, comprar um envelope e colocar no correio. Mas a expectativa quase a matou. Mal conseguia se controlar, apavorada de demonstrar o extremo nervosismo que alternava com o medo cruel de que o bilhete não chegasse, ou que o endereço não estivesse muito correto, ou que qualquer outra coisa desse errado.
Em Apiaí, tia Júlia, diretora do Grupo Escolar, recebeu um envelope barato, branco, sobrescritado com letra desconhecida. Abrindo-o, leu estarrecida o bilhete tosco, escrito como que às pressas e assinado com o apelido familiar de Anna, Naná. Seus olhos se arregalaram e ela ofegou, a mão procurando a boca. Ela leu e releu aturdida. Não parecia de modo algum a letra alta e elegante da irmã, mas ela acreditou, por causa do apelido. Juqueri! Como? Por quê? Mas Gustavo dissera... que era uma clínica em São Paulo... Um ano em tal lugar? Júlia sentiu náuseas e tateou procurando o sofá. Seu coração batia tão forte que precisou se recostar uns minutos. Foi falar com o marido, fora de si de tão nervosa. Mal conseguia falar:
— Augusto, Augusto! Veja o que chegou pelo correio! Precisamos fazer alguma coisa! Meu Deus, Augusto o que vamos fazer?
Tio Augusto era um homem grandalhão, um coronel, irmão do prefeito, ligado ao Dr. Diógenes Ribeiro de Lima. Resolveram ir a São Paulo falar com o eminente político. Longas conversas com pessoas importantes foram entabuladas, negociações foram feitas e alguns dias mais tarde, graças aos contatos deste último, Anna saiu do seu martírio, entre a irmã e o cunhado.
Dr. Diógenes em pessoa acompanhou o casal até o Hospital do Juqueri, com uma carta do Governador. Os médicos reclamaram, dizendo que a paciente iria “sair sem alta”, ao que o político respondeu:
— Ela não precisa de alta! Nunca deveria ter entrado aqui!
Anna saiu pelos altos portões e para a liberdade. Respirou profundamente o ar frio de Julho de 1944. Uma garoa tão fina que mais parecia uma névoa entrava-lhe pelas narinas, gelando garganta e pulmões, mas ela não se importou. Sua vida lhe fora devolvida e ela sentia uma euforia de conquista, uma embriagues de vitória contra quimeras e moinhos de vento. Sentia-se diferente do que fora, mais forte e mais livre do que nunca.

Agora podia ir buscar suas filhas.

6 Comments:

At 4/10/07 5:17 AM, Blogger caos e ordem said...

Pelo amor de Deus, ainda vem dizer que não sabe muitos detalhes? E se soubesse.
Estou matutando que a observação do Timtim é improcedente, só serve pra fazer média e dar apoio moral.
Sempre li que os escritores quando disparam a escrever só fazem isso, a Nice deve estar num surto desses e o melhor é deixar rolar. O livro vai ficar muito bom.
Repito OSHO, amor e ódio não são sentimentos isolados, são faces de uma mesma moeda.
digitou o Zecão

 
At 4/10/07 1:15 PM, Blogger caos e ordem said...

Maria Zélia minha mulher não é uma internauta. Às vezes conto alguma coisa que está rolando nos blogs, algum comentário. Li para ela o último parágrafo deste último capítulo, e reagiu dizendo que achou seu estilo semelhante ao dos grandes escritores, que deve escrever logo seu primeiro livro, certamente outros virão.
digitou o Zecão

 
At 4/10/07 2:12 PM, Anonymous Anônimo said...

Minha mae eh um genio de escritora! Uma historia contada por ela eh maravilhosa! Mas sua historia verdadeira ou nao contada por ela, eh pura magia, os sentimentos transbordam pela tela do computador!
Filha
Chris

 
At 4/10/07 8:08 PM, Anonymous Anônimo said...

Dá licença, Chris, mas preciso que vc me empreste seu comentário. Sua mãe é mesmo uma grande narradora. Chris, Zélia, Zeca, Deto, Cecília, Timtim, todos nós queremos: que venha logo o primeiro o livro. Este ensaio está atraente demais.

 
At 4/10/07 8:25 PM, Anonymous Anônimo said...

Prefiro não julgar ninguém, principalmente porque não se encontram aqui para se defenderem, mas se isso foi verdade... que triste, não? Gostaria de acreditar às vezes que quando morremos tudo se acaba, mas infeliz ou felizmente existe uma lei que chamamos de "ação e reação", "semeadura e colheita" que funciona além da vida material.
Façamos preces pelos envolvidos necessitados delas!

 
At 10/10/07 3:57 PM, Anonymous Anônimo said...

Que alívio!!!!!!

 

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