quinta-feira, outubro 04, 2007

Uma Grande Paixão - VIII

Morro Azul, Julho de 1944

A terceira filha, Mariana, estava com um ano e três meses quando, sem nenhum aviso, Anna apareceu.

Do ponto de vista de Anna, foi uma festa.

Abraçou a criança, sentou-se com ela ao colo e procurava agradá-la de todas as maneiras. A menina, habituada com uma casa sempre cheia e movimentada, não costumava estranhar ninguém. Já falava algumas palavras e era sempre risonha. Mas Anna logo viu que para a filha, ela era uma estranha, uma desconhecida. O tempo que passara longe dela estava fazendo uma grande diferença para as duas. Tentou construir uma ponte entre elas.
— Mariana?
A menina olhava séria para ela. Tia Hermínia juntou as mãos. Estava muito perturbada.
— Mariana, — continuava Anna — Sou sua mãe! Diga: Mamãe.
A menina voltava-se para Tia Hermínia, estendia o bracinho e repetia:
— Mamãe! Mamãe!
Anna franziu a testa. — Ela chama a senhora de mamãe?
Tia Hermínia ficou meio sem graça.
— É... Ela chama...
— E a senhora consente?
— Ela ouve meus filhos me chamarem de mamãe. Apenas imita. Não há mal nisso... Lembre-se que ela não conhece você. Quando chegou aqui tinha apenas dezoito dias, era uma recém-nascida... A pessoa que cuidou dela fui eu. Mas fique tranqüila. A mãe é você e ela vai saber disso. Virou-se para a criança, dizendo docemente:
— Mariana... Esta é Naná. Ela é a sua mãe...
A menina olhou para a mulher desconhecida, depois olhou para Tia Hermínia, sorriu e disse: Mamãe! Estendeu os dois bracinhos para Tia Hermínia, que a pegou no colo. Anna ficou tentada a impedir, a reter a menina, mas pensando melhor deixou a filha ir para o colo da tia. Seu coração doeu ao ver o quanto sua filhinha amava a outra e a julgava sua própria mãe. Doeu mais ao ver a criança, a criança que era sua, que ela havia dado à luz, ficar em pé no colo da outra e passar os braços finos ao redor do pescoço dela... e beijá-la ternamente, repetindo Mamãe! Até parecia que estava mostrando a todos quem era sua Mamãe. Anna disfarçou, mudou de assunto. Mas estava abalada. Mais um golpe do destino.
Procurou não pensar mais no assunto. As coisas se acertariam. Ficou dois dias na casa, conversando, contando tudo pelo que havia passado. Estava sempre dando um jeito de carregar a criança, de brincar com ela. Até resolveu comprar algum presente para a filhinha. Em companhia de Belinha, saiu com Mariana no colo, pela Rua Campos Salles. Ao passar por uma vitrine com sapatinhos de bebês, percebeu logo o interesse da menina, que apontava com o dedinho para um sapatinho de pelica cor-de-rosa. Comprou para ela.
No dia seguinte, Anna participou à tia que decidira levar a filha com ela até a casa dos sogros, no Paraná, em busca das outras duas. Pretendia fazer outra parada no meio do caminho, em Apiaí, na casa de sua irmã Júlia para descansar, que a viagem era longa.
Tia Hermínia suspirou. Ecos do passado. Gustavo fizera a mesma coisa, mas quando ele se fora, a pequenina ficara. Até agora. E todos já gostavam demais dela e tão acostumados estavam com sua presença na casa que nem mais cogitavam que não seria para sempre... E agora...
— Vou sentir demais a falta dela. Todos nós vamos sentir. Mas fazer o quê? Está certo assim, você é a mãe. Seus olhos se encheram de lágrimas. Anna se condoeu.
— Mas eu a trarei de vez em quando para que vocês matem as saudades.
Tia Hermínia pensou "E a criança? Como reagirá? Será que irá bem com ela? Ela não sabe de nada, não conhece... Minha Santa Therezinha do Menino Jesus, proteja a minha menininha"... Mas nada podia fazer, a não ser rezar.
A mala da criança estava pronta. Tio Pedro ofereceu-se para ajudar com a bagagem. Anna pegou-a ao colo dizendo:
— Vamos passear? Quer que eu compre para você outro sapatinho cor-de-rosa?
Foram todos até a porta da rua e ficaram acenando até que virassem a esquina. Tia Hermínia enxugava disfarçadamente no lenço amarrotado as lágrimas teimosas, vendo "sua menininha" adorada desaparecer na esquina, indo embora de sua casa para sempre... Entrou para o quarto, sentou na cama e pôs o rosto entre as mãos. Santa e Belinha entraram com ela e as três choraram abraçadas por muito tempo. Os outros filhos estavam fora. Eva era diretora de um Grupo Escolar de uma cidadezinha perto de Piracicaba. Ruth, Leo e José já eram casados e moravam em outras cidades.
Anna, carregando a filha, falava com ela e mostrava isto e aquilo para distraí-la.
Com a presença de Tio Pedro, a pequena sentia-se segura. Chegaram até o Largo dos Amores, onde ficava o ponto da “jardineira” que ia até Curitiba, passando por Apiaí. Tio Pedro abraçou a criança, que pegava seu rosto entre as mãozinhas, depois tirava seus óculos, ria e os recolocava, uma brincadeira que sempre faziam. Quando viu duas lágrimas descendo pelas faces dele, ela perguntou:
— Papai dodói? — e seguia com o dedinho o caminho das lágrimas dele pelo rosto.

Anna se despediu e pegou a criança. Quando entrou no ônibus com ela, a menina começou a se debater, querendo voltar para o colo do “papai”. Ao ver que não a atendiam, nem Anna, nem “papai”, e que este ia ficando lá longe, começou um berreiro ensurdecedor. Gritou tanto que Anna achou por bem dar-lhe uns tapas, o que foi desastroso. O motorista parou o ônibus, dizendo:
— Minha senhora, essa criança é sua? Não parece conhecê-la. Se não for, a senhora desce aqui, e já.
Anna ficou indignada. Mostrou a certidão de nascimento que Gustavo deixara com os tios e o motorista não teve alternativa, senão aceitar os fatos... e os gritos. Mas Anna ainda explicou que estivera doente e a menina ficara até agora com outras pessoas da família e realmente não se lembrava dela. Por isso a choradeira. Nesse momento Anna pensou que a tia julgava natural ser chamada de "Mamãe" pela filha que não era dela... e detestou isso.
Entre os passageiros estavam duas amigas de Tia Hermínia, que dias depois contaram a ela essa cena. Contaram que a menina chorara sentidamente durante toda a viagem e chamara todo o tempo por “mamããe”. Que caía num sono curto de pura exaustão e soluçava de fazer dó. Acordava gritando apavorada.

Uma semana depois, Tia Hermínia recebeu um telegrama de sua sobrinha Júlia, a irmã mais velha de Anna, em cuja casa em Apiaí mãe e filha se hospedaram.
O telegrama dizia:
Tia Hermínia. Venha buscar Mariana urgente. Só chora. Não come. Emagreceu muito. Estamos preocupados. Júlia e Augusto.

7 Comments:

At 5/10/07 5:19 AM, Anonymous Anônimo said...

É triste, ainda bem que já sabemos que acabou dando certo, Nice cresceu, formou sua família, já viveu mais de 50 anos e está aqui para contar tão bem a história.
digitou o Zecão

 
At 5/10/07 5:21 AM, Anonymous Anônimo said...

Oi Nice, o Shiost já tirou do Refulgir o incômodo criptograma, que tal tirar do seu também. Parece que os gringos deram uma folga.
Zecão

 
At 5/10/07 12:38 PM, Anonymous Anônimo said...

Todos nos sabemos como a historia termina, mas o mais interessante eh saber como chegamos ate aki.
Esperamos pelas cenas do proximo capitulo...
Filha
Chris

 
At 5/10/07 2:15 PM, Blogger marianicebarth said...

Não sei como tirar as letras... Mas vou tentar. Se coloquei, tenho de saber tirar. Só que vai ficar para mais tarde, amanhã, acho...

 
At 5/10/07 2:25 PM, Blogger marianicebarth said...

Pronto, Zeca, as letras incômodas já desapareceram. Foi mais fácil do que pensei.

 
At 5/10/07 5:57 PM, Anonymous Anônimo said...

Aproveitando que estamos sem os criptogramas, vamos deitar falação.
Impressiona-me que mesmo fatos tão tristes prendem a gente. É a arte da narradora. Gostei, por exemplo, do detalhe que foram conhecidas da tia Juventina que reportaram as cenas da jardineira. Viva a INTERNET, que permite tal interação. Em cada canto do mundo há alguém acompanhando "uma grande paixão", Todos aguardando o próximo capítulo.

 
At 5/10/07 10:20 PM, Anonymous Anônimo said...

Com certeza! Esperando ansiosamente! Se este é o resumo do resumo, imagine o livro como será! Aqui em casa nada mais farei até lê-lo inteirinho!

 

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