sábado, dezembro 22, 2007

A Porta Mágica - 1º Capítulo


— Não se impressionem com o terror da imagem. Foi um sonho que tive, em 1979.
Eu estava já há muitos anos desenhando com bico de pena para uma empresa de propaganda e publicidade que aproveitava muito bem esse meu talento. Mas queria pintar a óleo e pintar algo em um estilo completamente diferente do acadêmico, que nem eu mesma sabia o quê nem como poderia ser.
Sentia que havia algo fervendo em minha cabeça, mas não visualizava. Às vezes sonhava com quadros diferentes, modernosos, mas quando acordava, a visão escapava para uma região de névoa impenetrável.
Nesse ano estava cursando o Alumni e fiz amizade com algumas das outras alunas. Fazíamos encontros de estudo com direito a café, refrigerantes e maravilhosos bolos de chocolate. Hummmm... Que delícia! Estudava-se bastante, mas conversava-se muito também.
Numa desses encontros, num sofisticado apartamento de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, vi pela primeira vez uns dois ou três quadros de Helenos, pintor sui generis em tudo e por tudo. De estilo próprio, suas figuras humanas eram gordinhas e tinham cabeças arredondadas e geralmente inclinadas para um dos lados, na época. Adorei os quadros que vi lá e perguntei quem era Helenos. A Rosa, nossa anfitriã, respondeu que era um amigo, excelente pintor e pessoa incrível. Perguntei se ele dava aulas. Ela disse que sim, mas que ele era um professor difícil. Saí de lá com endereço e telefone e ao chegar em casa, tratei de marcar aulas com ele.
Antes de mais nada ele perguntou "por quê" eu queria essas aulas. Respondi que era formada em Belas Artes e que desenhava, mas não conseguia pintar e que não gostava do que sabia fazer.
— E porque não gosta? — perguntou.
— Acho que é porque não sei pintar. — respondi — Nunca fico satisfeita com o que desenho e muito menos com minha pintura acadêmica e gostaria de ter um estilo diferente.
— Vou avisando que não dou aulas para “madames”, nem para senhoras aposentadas. Meu tempo é curto e não o desperdiço.
— Como assim? Acho que não entendi.
— Repito que não dou aulas para essas madames que não têm o que fazer ou para as se aposentaram e pensam que pintura é um hobby e me procuram querendo copiar figuras de calendários.
— Não sou "madame" e também ainda não me aposentei... Tenho 36 anos, meu tempo também é curto, pois dou aulas de Educação Artística em Colégio todos os dias e tenho casa, marido e 4 filhos para cuidar.
— Então é do tipo “mulher parideira”... Você não deve ter tempo para se dedicar como deve. Se não tiver esse tempo, nem adianta começar.
Se fosse hoje eu o teria mandado passear, mas naquele tempo eu era mais calminha e acreditava que ele me ensinaria a me libertar, “voar” na pintura. E quanto mais difícil, mais eu quero. Consegui que ele marcasse uma entrevista preliminar. Pediu que levasse alguns desenhos para ele poder avaliar. Só depois marcaria aulas... ou não. Deixou isso bem claro.
Supus (acertadamente) que ele queria avaliar a mim, se eu era daquelas que ele tachou de “madame” que não tem o que fazer ou se era mesmo mulher parideira... Tudo isso foi muito desafiador e eu... sou ariana... Adoro um desafio.
Na manhã marcada, com meus desenhos, cadernos e muita expectativa, encontrei-me no corredor de um prédio com muitos apartamentos pequenos, num prédio feio da Rua Capote Valente.
Toquei a campainha e quase imediatamente Helenos apareceu, um homem baixo, moreno, um tanto atarracado, de olhos pequenos e perscrutadores e barbicha negra. Convidou-me a entrar e crivou-me de perguntas sobre o que eu pretendia e onde queria chegar. Sentia-me escaneada. Viu meus trabalhos e disse friamente que nada tinha para me ensinar em matéria de desenho.
— Tem sim, — respondi — meu desenho é acadêmico e eu NÃO QUERO desenhar assim. Sei que tenho algo aqui dentro que, se saísse, talvez eu pudesse desenhar e pintar coisas diferentes disso que você está vendo. Sei copiar qualquer coisa, sei desenhar retratos, que não passam de cópias do que estou vendo. Sei desenhar qualquer objeto que você quiser, sei que sai igualzinho, mas não sei criar coisa alguma, não sei inventar!
— Mas todos os grandes pintores foram acadêmicos. Picasso foi um bom acadêmico. Dali é um excelente acadêmico. Todos os realmente bons foram acadêmicos.
— Sei disso, mas como se libertaram? Porque eu... não consegui até agora... Sinto que estou presa, amarrada e cega, você me entende? Será que você pode me ajudar?
— Vai depender de você. Apenas de você... Eu jamais ponho um dedo em desenho de aluno.
— Nem eu quero isso! Quero saber se tenho mesmo isso que lhe falei, essa chama, essa força, essa... seja lá o que for... que faz com que o coração bata mais rápido e que os olhos e os dedos saibam o que estão fazendo... Porque eu já senti isso ao ver um artista pintando o retrato de uma amiga minha e a emoção que senti... meu coração disparou... e me vi envolvida por um furacão de sensações, foi algo que não dá para explicar e não dá para esquecer. E depois, uma vontade de pintar... imensa... grandiosa... terrificante...
Pela primeira vez ele sorriu de leve. E pela primeira vez seus olhos se suavizaram um pouco.
— O nome disso é inspiração. Não é fácil. Vem raramente. Todos os artistas sabem disso: 10% de inspiração e 90% de transpiração. Talvez eu aceite você como aluna. Mas isto significa TRABALHO, trabalho duro. E dedicação. Já vi que você não é uma dessas “madames”, mas ainda veremos se também não é uma dessas “mulheres parideiras”... Vamos marcar as aulas. Duas vezes por semana, terças e quintas, às 9h.
Não tive coragem de perguntar o que ele queria dizer com aquilo de parideira. Não importava. Eu tinha conseguido as aulas. Eu sabia, tinha a certeza de que agora, só agora iria começar a crescer.
— E vamos começar pelo desenho. Você vai esquecer tudo o que aprendeu nas Belas Artes. Vai começar do lápis preto, do zero. Vai aprender a criar, com o lápis.
E lá fui eu para casa, antecipando as maravilhas que faria dali a dois dias, como se fosse assim, como se fosse fácil assim...

7 Comments:

At 22/12/07 10:43 PM, Blogger marianicebarth said...

Se vocês quiserem ver melhor o desenho, que foi feito em bico de pena, cliquem na imagem.

 
At 22/12/07 11:31 PM, Anonymous Anônimo said...

Que coisa terrível mais bem feita!
Esta imagem veio num sonho? E conseguiu decifrá-lo?

Depois vc. continua a contar sobre as aulas com o Helenos. A ajudaram em seu objetivo?

E quem não tem dom nem para copiar nada, como no meu caso?

Legal! Vc. escreveu! Pensei que o Natal tinha nocauteado todos nossos blogueiros!

 
At 23/12/07 2:37 PM, Blogger marianicebarth said...

Depois que TODO MUNDO comentar, vou continuar a história.

Sim, para as duas primeiras perguntas: Sonhei com essa porta e vou contar como foi. E uma psicóloga e um psiquiatra amigo do Nelson decifraram igualzinho.

E sim, as aulas do Helenos foram o que me levantaram do chão. Voei um bocado...

Não existe isso de "não consigo copiar nada". Existe sim, uma barreira, uma limitação psicológica que você mesma (ou alguém na sua infância) colocou.

Pergunte ao Caos se isso não é a verdade pura. HÁ uma experiência feita por cientistas e psicólogos que prova isso: foram colocadas pulgas num pote em que colocaram a tampa. As pulgas começaram a pular para sair, mas batiam na tampa reiteradamente. Então "aprenderam" que não podiam passar de uma certa altura se não quisessem bater na tampa. "Aprenderam" que havia ali uma limitação. E continuaram a pular até uma altura em que não batessem mais na tampa. Então os cientistas tiraram a tampa e verificaram que elas não mais chegavam até a abertura e não "conseguiam" mais sair.
Esse fato eu costumava contar a meus alunos que diziam que não conseguiam desenhar. Contava a eles que havia uma "tampa" imaginária acima de suas cabeças e que, se a tirassem, desenhariam O QUE QUISESSEM!
Em seguida eu pedia a um deles que fosse buscar sua bicicleta, que estava ali fora. Eu colocava a bike sobre duas carteira e dizia a eles para desenhá-la. Você não calcula a qualidade dos desenhos! Eram impressionantes! Depois disso eles desenhavam QUALQUER COISA. E muito bem!

 
At 23/12/07 5:59 PM, Anonymous Anônimo said...

Podem dizer o que quiserem; o Shiost pode me ameaçar com os ciumes do Dr. Nelson, mas o meu encantamento com a Nice aumentou muitos pontos. Ainda bem que a própria primacaçula pediu para continuar a história! Mais do que nunca tenho certeza que uma autobiografia romanceada será um sucesso.
Admiração pelo estilo; admiração pelo trabalho (bico de pena); admiração pela mulher determinada. Gostei da confissão: "naquele tempo eu era mais calminha". Está assumindo que, agora, é mais estouradinha? Que venham os livros (quem sabe ilustrados pela autora?!)

 
At 23/12/07 6:03 PM, Anonymous Anônimo said...

Não pode nos contar qual foi a interpretação da psicóloga e do psiquiatra?

 
At 23/12/07 6:07 PM, Blogger marianicebarth said...

É claro que vou contar, mas vocês vão ter de esperar a história chegar nesse pedaço. Estou esperando o Shiost, o Caos, o Turini e a Edi comentarem para poder continuar. Já estou escrevendo o resto. Também nãso sei se vou agüentar ficar esperando por eles até 2008... Provavelmente, vou escrever só para você e a Primacaçula...

 
At 11/1/08 10:21 AM, Blogger Polemikos said...

Preciso achar meu "Helenos". Estou muito preso, preciso me "abrir e expandir", creio que você entende.
A respeito de parideira, transcrevo Herbert Read : "... o artista é {como uma} parteira." "Não atribuímos à parteira a criação do menino que ela traz ao mundo : {porque deveríamos} atribuirmos ao artista a cfriação da obra de arte que ele traz ao mundo, a geração do vento .... que vem do coração"

 

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