sábado, novembro 24, 2007

PARADA NO UMBRAL DO POSSÍVEL


São 4:30h da matina e já estou acordada.

A culpa é do Saramago.

Depois de um sono inquieto, com sonhos vagos de perseguição, numa selva de pedra tecnológica onde uma gangue se especializava em roubar celulares detectáveis nos bolsos ou bolsas das pessoas mediante ondas de radiação, primeiro meio que acordei e, depois, desisti de dormir.

Saramago me inquieta muito. O "Ensaio sobre a Cegueira", na cabeceira, desprende uma espécie de bruma de manso terror.

Durante o dia penso nas "camaratas" imundas, nos corredores infectos de dejetos de todo tipo, nos cuidados a que os cegos ficam sujeitos, na dependência abjeta das pessoas que enxergam, na medonha insegurança e na inconfiabilidade.

Que experiência terrível é a simples leitura desse livro! Que emoção insidiosa e particular ele provoca! Uma emoção de horror brutal pela crueldade humana.

Fiquei parada no umbral do possível, entre o sono e a vigília, até perceber que o que me incomodava era a "presença do livro" ao meu lado na cama.

O umbral do possível.

Gosto da maneira portuguesa e do estilo do autor, intercalando as frases e os diálogos como quando se pensa, as letras maiúsculas começando a frase depois de uma vírgula, sem ponto de interrogação depois de uma pergunta, sem ponto final depois de uma resposta. Tudo junto, sem travessão para separar do resto os diálogos, que ficam assim meio difícil de entender de imediato, o que nos obriga a ler com muita atenção e a voltar atrás, às vezes, para ver quem está falando agora.

Não é um livro que se leia de uma sentada.

E estou ainda na metade. Por causa da falta de tempo, só leio à noite, antes de dormir. E como ando cansada, leio poucas páginas e durmo com ele nas mãos. A capa é branca como uma moldura em volta de um retângulo em tom pastel, róseo, suave, com desenhos em relevo, como braile.

Durante o dia penso que é um livro deprimente e que vou devolvê-lo ao clube sem terminar. Mas preciso, quero saber o final, que rumo o autor deu à história, se a mulher do médico cegou também ou não.

O gênio do Saramago imaginou tão bem (ou tão mal) tamanha desgraça coletiva que fico pensando o dia todo no valor da visão, na alta graça do dom que temos de poder ver e enxergar, de ouvir e de sentir cheiros e paladares.

Parada no umbral do possível, olhando para dentro daquele hospício desativado onde estão aqueles cegos em suas camaratas, à mercê da caridade de uns e da maldade de outros, imersos em abandono e sujeira, entregues a si mesmos e o tempo todo  ameaçados.

Realmente, não o sinto um "livro amigo", daqueles que seguro ao peito quando termino de ler, já sentindo falta das personagens que se tornaram queridas. Não, não é esse tipo de livro. Não é a boa emoção que causa, mas a emoção negativa.

Saramago não acaricia. Ele sacode a gente violentamente, enfia dois dedos sujos em nossos olhos, machuca e agride, mostra-nos como somos, os humanos, torres de egoísmo.

Mas estou apenas na metade do livro.

Preciso saber se alguma coisa vai mudar.

14 Comments:

At 25/11/07 11:15 AM, Blogger Polemikos said...

Italo Calvino no "Castelo dos Destinos Cruzados" fala de uma outra epidemia contagiosa. Após atravessarem um bosque, os viajantes perdem a condição de falar e só conseguem se comunicar atraves do simbolismo de cartas do tarô.
Quisera ter eu a capacidade de escrever um romance sobre a solidão como doença contagiosa. Algo assim como O Ensaio sobre a Solidão!!

 
At 25/11/07 4:12 PM, Blogger marianicebarth said...

É indizível o meu horror ao ler o episódio sobre o "pagamento" das mulheres pela comida de todos. Sinto que fiquei diferente do ser humano inocente que era antes de ler tal coisa.

 
At 25/11/07 7:14 PM, Anonymous Anônimo said...

É por tudo isso que escreveu sobre este livro que a torna até uma pessoa diferente, que procuro ler só sobre assuntos que me aqueçam o coaração! Que me mostrem que ainda posso confiar no ser humano e que muitas coisas maravilhosas acontecem sim, embora não dêem IBOPE em venda, audiência, etc, etc.
Que me tornem uma pessoa um "tiquinho" melhor!
Umbral para mim, isto é, para nós, espíritas é um lugar no plano espiritual de trevas, como um inferno para os católicos, com a diferença de que não acreditamos, em penas eternas (não condiziriam com os atributos divinos) ... mas apenas transitórias!

 
At 25/11/07 8:31 PM, Blogger caos e ordem said...

Pois é, quando o Turini escreveu sobre "Amaurose", eu me lembrei do Saramago, e agora a Nice nos brinda com este texto. Gosto de saber que provoquei a leitura e discussão do "ensaio sobre a cegueira".
Faz tempo que li e meio na correria, vou ter que reler e então voltar ao tema.

 
At 25/11/07 9:58 PM, Anonymous Anônimo said...

Que bom que as diferenças existem!!!
Que seria se todos pensassem da mesma maneira, não é mesmo???

 
At 25/11/07 11:07 PM, Anonymous Anônimo said...

Parem com isso, gente! Pra que ficar lendo coisas horripilantes, quando a vida já tem tantas passagens que fazem sofrer? Esse Salamargo é um bruxo que transforma as pessoas boas em pessoas más. Há tanta leitura amena, construtiva, que nos faz crescer. Bom! Ces qui sabe!

 
At 25/11/07 11:31 PM, Anonymous Anônimo said...

S A L A M A R G O !!!!!!
Alguém já tomou algo com esse nome??? É horrível!

Adorei!!! VC. não existe, Timtim!

 
At 26/11/07 11:42 PM, Blogger marianicebarth said...

Salamargo é um laxante? Parece que me lembro de algo assim.

 
At 26/11/07 11:53 PM, Blogger marianicebarth said...

Mas agora vou até o (Sal)amargo fim... O livro deu uma melhorada, pelo menos eles conseguem sair. Tudo o que sofrem, mas pelo menos com liberdade, dá pra gente agüentar.
Querem saber? Não me arrependo de ler esse livro. Ele me fez pensar e meditar em, por exemplo, como somos felizes pelo simples fato de que enxergamos e, principalmente, que somos LIVRES para ir e vir, falar, emitir nossas opiniões, ouvir a dos outros, concordar ou não, podemos usar sabonetes cheirozinhos, shampoos que deixam nossos cabelos brilhantes, tomar banhos diários, mais de um, quantos quisermos, horrorizarmo-nos com os temas realistas de certos livros, gostar ou não gostar deles, mas sempre aprender, etc. etc. etc..

 
At 26/11/07 11:55 PM, Blogger marianicebarth said...

A VIDA É BELA!!!!!!! Não é mesmo, Timtim?
Daqui a pouco tempo continuarei com a saga, Caos.
Já me recuperei, Primacaçula, já estou eu mesma de novo!

 
At 27/11/07 9:45 PM, Anonymous Anônimo said...

QUE BOM QUE VC. VOLTOU A SER A MESMA!!!
PELO MENOS ESSES LIVROS TEM O MÉRITO DE nos fazer agradecer AS BÊNÇÃOS DA NOSSA VIDA!!! E QUANTAS!

Uma vez o mano Shiost me deu uma parte do Livro "O maior milagre do mundo" intitulada: "Conta as tuas bênçãos".
Talvez nem ele se lembre! Foi algo que o tocou na época!

 
At 28/11/07 7:47 PM, Blogger Antônio said...

Realmente não me lembro de nada de "Conta tuas bênçãos". Só lembro que fiz comentários sobre o "Ensaio.." em um blog anterior. Li, adorei o livro e o escritor e o recomendo para quem gosta de ler coisas sérias, no original e com estilo. Os comentários da Nice me deixaram com tanta inveja que tenho vergonha de comentar outro livro neste espaço.

 
At 28/11/07 9:38 PM, Anonymous Anônimo said...

Somos muito felizes, mesmo com os sabonetes não apreciados pelo Shiost!

Não deve se lembrar mesmo do que falei: faz um longo tempo, quando se encantava mais com a vida. Lembro que me disse que era algo para se ter à cabeceira!

 
At 7/12/07 11:50 PM, Anonymous Anônimo said...

Nice,

Está muito bom! Tem continuação?

 

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