sábado, outubro 06, 2007

Uma Grande Paixão - IX


Tia Hermínia leu várias vezes o telegrama, o coração se partindo, desejando que fosse um pesadelo.
Como pudera deixar que a situação chegasse a esse ponto? Por que não fizera valer sua opinião? Mas ela sabia a resposta, não pudera, não pudera negar à mãe. Ela sabia que isso aconteceria... sua menininha... estava... Oh meu Deus, ela pode morrer? Não! Não queria pensar nisso! Em um primeiro momento ela chorou, mas recobrando-se correu até a antiga cômoda em seu quarto, sobre a qual brilhava acesa uma lamparina em frente a uma estampa de Santa Therezinha e outra de Santo Antônio, rodeando uma pequena imagem de argila de Nossa Senhora. Ela tomou a imagem nas mãos e rogou à Mãe de Deus com toda a sua fé pela vida de sua menininha. E pediu forças para cumprir a difícil tarefa que tinha pela frente, trazer a criança de volta, tirá-la dos braços de sua mãe biológica e acrescentar mais uma carga a quem já tanto havia sofrido. Era uma tarefa e tanto e ela apertou a imagem contra seu coração. Então sentiu uma onda morna de paz que a cobriu como um manto protetor.
Reconfortada, chamou as filhas, Belinha, Santa e Pique. Mostrou o telegrama, dizendo que iria para Apiaí buscar Mariana. Santa iria com ela. Belinha e Pique ficariam tomando conta da casa e do pai. E iriam imediatamente.
— Mamãe, a jardineira não passa hoje... — disse Belinha.
— Iremos de carona num caminhão qualquer para o sul. — Santinha — arrume uma muda de roupa para nós, rápido, vamos já.
A coragem dela de pegar uma carona com um estranho motorista de caminhão é de estarrecer hoje em dia, mas naquele tempo os automóveis eram raríssimos. Naquela cidade só os muito ricos pensavam em ter um.
Mamãe Hermínia contava muitas e muitas vezes essa história. Eu a ouvi dezenas de vezes.
Foram mesmo de carona em um caminhão. A viagem, a 30, 40km por hora, foi lenta e torturante e Hermínia passou mal na serra, na estrada deserta, estreita e esburacada, traçada em plena mata, com mais curvas acentuadas do que qualquer um pode suportar.
A viagem foi interminável mas enfim chegaram, de madrugada. O motorista deixou as duas na praça às quatro da manhã e não querendo acordar os sobrinhos Júlia e Augusto a essa hora, sentaram-se num banco para esperar amanhecer. Geava. Cobriram-se com os xales de lã feitos de crochê por Hermínia, grossos e quentes, mas insuficientes para o grau zero de temperatura. Logo começaram a sentir nos ossos a umidade e então se levantavam tiritando e andavam, para lá e para cá, abraçadas, para se aquecerem.
Por volta das 6 horas, um dia fosco e sem sol começou a clarear e as duas mulheres enregeladas encaminharam-se para a casa de Augusto e Júlia. Recebidos pelo casal, enquanto Júlia foi fazer um café, Hermínia ouviu o chorinho lancinante da criança. Sem pedir licença precipitou-se na direção do lamento, chamando — Mariana! — O choro parou de repente e inundada de emoção ela ouviu: — Mamãe?!... Mamãe!!! — e quando chegou ao quarto, a criança já descera da cama sem grades e vinha ao seu encontro, os braços estendidos para ela, que a pegou no colo chorando.
A criança rodeou seu pescoço com tanta força que — contava Hermínia — só cortando seus braços fininhos ela largaria — e assim ficaram por muito tempo, abraçadas. Hermínia chorava e beijava as faces risonhas da sua menininha. Ficou penalizada com a extrema magreza e com as olheiras escuras que rodeavam os olhos grandes de Mariana. Seu espírito prático emergiu, procurando a cozinha para providenciar um mingau de maizena. Mas a pequena não conseguia tomar quase nada do mingau, e Hermínia pensou que seu estômago estava “pequeno como o de um passarinho”.
Anna abraçou Tia Hermínia. Conversaram por bastante tempo. Disse que estivera pensando e que a única solução, para o bem da filha, seria mesmo que esta voltasse a viver com a tia por mais algum tempo. Mas de repente, não conseguiu se conter e chorou muito. Soluçava e perguntava a Deus por quê fazia isso com ela, que mal ela teria feito para sofrer tanto, que triste destino o dela de ter de perder quem mais amava. Revoltou-se contra Gustavo. Iria procurá-lo para saber como ele explicaria tudo isso... E ela mesma, como poderia viver sem ele? Ela o odiava ou o amava? Já não sabia...
Tia Hermínia estava imersa em compaixão. Sentia toda a dor da sobrinha e sabia que nada poderia servir de consolo tão cedo. Só o tempo... talvez...
Mas a criança vinha em primeiro lugar para ela agora, pela urgência do problema do apetite. Tinha de voltar para casa, para que ela se sentisse amada e segura. E estava com receio de que a pobre Anna não suportasse outra vez a separação e voltasse atrás na sua decisão. Resolveu voltar no mesmo dia. Não importava o cansaço. Tio Augusto concordou, era o melhor a fazer.
Outro motorista ofereceu a carona: era um caminhão de porcos.
Jamais, enquanto viver, poderei me esquecer daquele cheiro.

6 Comments:

At 6/10/07 6:53 PM, Anonymous Anônimo said...

Quero saber da Nice: É bom saber que meia dúzia de atentos leitores ficam esperando cada capítulo?
Não é que eu duvide, mas peço confirmação: Você não tinha dois anos
(ou estou enganado?) e se lembra da viagem no caminhão de porcos, se lembra do cheiro?
Seja como for, a narrativa está apaixonante, cheia de detalhes que prendem e dão colorido aos fatos.

 
At 6/10/07 8:16 PM, Blogger marianicebarth said...

Sim, Timtim, eu tinha um ano e três meses e me lembro, não só do cheiro do caminhão, mas também, antes disso, de estar em cima de uma mesa com uma lãmpada pendurada bem perto de minha cabeça e de ter ali mesmo contado à Mamãezinha que "Tia Júlia bá bá", mostrando o lugar em meu corpinho e que a acusada revidou: Ô, mentirosa! (e percebi que os adultos mentem...) e me lembro de outras coisinhas da casa dela. Pode parecer incrível, mas é verdade. E muita coisa ficou bloqueada. Lembro-me de muitas coisas da minha infância e a explicação para isso é que foi tudo muito traumático... Outra explicação é que essa história foi contada daí em diante para todas as pessoas que chegavam e perguntavam à mamãe "quem é essa criança?". Mas o cheiro inconfundível de um caminhão de porcos... está presente até hoje.

 
At 7/10/07 8:26 PM, Anonymous Anônimo said...

Minha irmã ( M. Christina) também lembra de coisas qdo tinha essa idade!
Por falar em irmã, cadê o mano Shiost comentando este blog? Disse no Provérbios que esquecemos dos outros que estão por aí! Não é verdade, já que o "Gatos 2" tem 11 comentários! E o seu amigo Turinni?

A vovó faria tudo para salvar uma criança, ainda mais qdo criou com poucos dias de vida!

 
At 7/10/07 9:10 PM, Blogger marianicebarth said...

Timtim, é bom saber que estão acompanhando e, alguns, até esperando... Como já disse uma vez, nós escrevemos para vocês.

Primacaçula, o Turini disse por e-mail, quando perguntado, que não se sente à vontade para comentar escritos com essa carga emocional. Disse também que isto que estou fazendo, ele não faria em hipótese alguma... Então temos de prescindir dos comentários dele... Mas disse ainda que está lendo tudo e que "adora" tudo o que eu escrevo...

 
At 7/10/07 10:15 PM, Anonymous Anônimo said...

Cada cabeça uma sentença. Eu, bem ao contrário do Turini, admiro não só o estilo,mas principalmente a maneira que encontrou para esta fabulosa catarse. Para mim não há nenhuma dúvida que vc, Nice, vai sair bem mais fortalecida, engrandecida.

 
At 9/10/07 11:47 AM, Anonymous Anônimo said...

Eu me lembro de uma viagem que fizemos para Termas do Gravatal. Me lembro como se fosse hoja da piscina, tinha dois anos!
Continuo esperando por cenas dos proximos capitulos
Filha
Chris

 

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