quarta-feira, abril 09, 2008

O Aperto 2ª Versão

Ele percebeu que não daria mais tempo de nada.

Em desespero, tentando salvar sua dignidade, procurou e viu uma edícula ao fundo, com um mini banheiro e correu para lá. Ao entrar e fechar a porta com estrondo, ainda pôde ver a dona da casa, de olhos arregalados, que dizia alguma coisa e fazia para ele gestos com as duas mãos.

Sinto muito, pensou, não dá mais... Mal teve tempo de arriar as calças e sentar-se, aliviado. Mas de repente ele sentiu sua nuca se arrepiar e foi só então que ouviu o rosnado ameaçador do enorme pastor alemão, preso ali antes dele.
A cena que se seguiu foi dantesca.

Ele plantou um pé entre os dentes do animal enfurecido. Rosna, empurra, empurra, rosna, e o senhor Gatti, tão educado e elegante, percebeu que nesse vai e vem, suas calças já eram... Começou a ouvir ali fora uma voz de homem gritando comandos para o cachorro. — Duque, sentado! Duque, fica! E uma voz aflita de mulher que gritava — O senhor está bem? E uma voz esganiçada, que ele descobriu que era a sua, respondia — Sim.., acho... que... estou bem, não sei... E ela: — Ah, meu Deus! Duque! Pára, Duque! Senhor, abra a porta!

E então o Duque o largou. Mas a situação não estava nada boa, as calças sujas e rasgadas e ele não conseguia se levantar, nem se higienizar... Mas como o que não tem remédio, remediado está, ao perceber que o cão não se movia, embora continuasse rosnando e lhe mostrando os dentes, ele levantou o que restava das calças e de sua compostura e esgueirou-se para fora. Cheirava como um porco.

Lá fora uma platéia silenciosa o aguardava. O coração só faltava lhe sair pela boca. Ele tremia da cabeça aos pés e sentia o rosto em brasa.
E sua filha, de mãos nas faces tão coradas quanto as dele, morria de vergonha.

● ● ● ●

Esta história (verídica) se passa no início dos anos 50, quando a etiqueta, o refinamento, o respeito e os pudores ainda existiam. Os nomes foram trocados.

O protagonista, Senhor Gatti, que era um homem muito bem situado na vida, de família hiper tradicional, morava no Jardim Europa, um dos bairros mais elegantes e ricos de São Paulo. Lá residia a nata da sociedade paulistana, o chantilly da capital.

Ele mesmo nos contou o caso pormenorizadamente, mais de vinte anos depois.
Disse que num sábado muito frio de agosto, resolveram almoçar uma deliciosa feijoada em um restaurante conhecido. Regininha, a filha de doze anos, não queria ir, porque tinha sido convidada para a festa de aniversário de uma amiguinha da escola e não queria se atrasar. Toda a classe iria e só se falava nisso desde antes das férias.

O pai conseguiu convencer a filha de que seria um almoço rápido, mas o restaurante estava tão lotado que tiveram de esperar muito tempo para serem servidos. Quando já estavam a ponto de desistir, chegou a vez deles. Mas lá dentro, já acomodados, ainda tiveram de esperar. Chegou a hora da festa e eles nem tinham sido servidos. Enfim, chegou a comida, a das crianças alguma coisa mais leve, tudo muito gostoso, e o Senhor Gatti, que era um “bom garfo”, comeu até fartar.

Regininha estava amuada e se recusava a comer. Girava e regirava o seu garfo no prato e levantava para o pai uns olhos carregados de tristeza e censura no rostinho bonito, pois ainda teriam de buscar o presente em casa.

O senhor Gatti ficou muito nervoso com isso tudo, pois era um pai exemplar e sabia que desta vez fora um pouco teimoso. A filha era o seu dodói e ele não queria vê-la infeliz. Pagou a conta e saíram. Apanharam o presente e a D. Carlota preferiu ficar em casa com o menorzinho, para descansar.

O senhor Gatti seguiu com a filha, sentada muito séria, com o presente entre as mãozinhas crispadas. — Que horas são, papai? — perguntava ela a cada cinco minutos. Isso e o seu sentimento de culpa foram enervando o homem, que começou a sentir umas cólicas na barriga.

A casa ficava no Alto da Lapa, um bairro nobre e de ruas quase todas curvas e desertas. O senhor Gatti não o conhecia e quem mora em São Paulo, sabe o quanto é difícil localizar uma rua lá. A tarde caía e nada de encontrar a casa.

As cólicas estavam tão fortes nesta altura que ele realmente precisava chegar. Ficou pensando que naquela situação teria de mandar às favas o constrangimento. A palavra banheiro lhe povoava a cabeça e o deixava alucinado.

Depois de muito rodar e voltar ao mesmo ponto, o senhor Gatti finalmente encontrou uma pessoa que indicou o caminho. Era quase noite, mas a menina não abria mão de ir. E agora ele também precisava muito. Suava frio tentando se controlar. Estava cada vez mais difícil e ele estava com medo de não conseguir.
O céu pareceu se abrir para ele quando estacionou em frente à casa iluminada e alegre, toda enfeitada com faixas e balões. Regininha correu para dentro.

Foi então que ele viu lá ao fundo o banheirinho...

11 Comments:

At 9/4/08 8:18 PM, Anonymous Anônimo said...

Que história! Que narradora! Que situação!Sua competência, Nice, foi posta à prova: narrar cenas tãos escabrosas, com a maior elegância.
Não riam não, porque tudo pode acontecer, principalmente com estas feijoadas de restaurante. Timtim

 
At 12/4/08 9:31 AM, Blogger caos e ordem said...

Muito engraçado o aperto do senhor Gatti, que foi aperto em mais de um sentido.
Tão bem narrado einteressante, mesmo assim fico com a história do cavalo, da qual gostei mais ainda.
digitou o Zecão

 
At 12/4/08 11:56 AM, Blogger marianicebarth said...

O cavalo está ganhando. Também gosto mais. Foi mais fácil de escrever porque aconteceu comigo. "O Aperto" deveria ser o nome da outra. O Caos disse bem. Se vocês tivessem conhecido o homem... Era tão aristocrático, mas nada "fresco", como mostra o fato de ter nos contado tal situação. Gostava de contar histórias de acontecimentos inusitados. Infelismente só me lembro do "Aperto" e de uma outra que aconteceu com um casal brasileiro no exterior, acho que nos anos 70. Contarei um dia. Preciso espanar a memória...

 
At 12/4/08 8:44 PM, Blogger marianicebarth said...

Pronto, Caos o nome foi trocado, mas a história não vai ficar melhor...

 
At 12/4/08 8:45 PM, Blogger marianicebarth said...

Como diz o Gabriel Garcia Marquez, há contos que andam e outros que desandam e quando desandam, ou começamos de novo ou jogamos no lixo...

 
At 14/4/08 7:51 AM, Blogger caos e ordem said...

Fique tranquila, nada desandou além do sistema digestivo do sr. Gatti.
Tudo foi tão impressionante que na noite seguinte tive um pesadelo com WC e meus apertos.
Vai contando que vamos lendo e comentando.

 
At 14/4/08 12:57 PM, Blogger Polemikos said...

Desandar, não desandou .... mas faltou suspense.

Eu não seria capaz de fazê-lo mas posso me permitir uma sugestão?

Creio que v. conseguiria uma narrativa mais "dinâmica" se v. começasse com ele entrando no "banheiro" confrontando o cachorro; aí faz um flashblack de como ele chegou lá; e aí encerra com sua saída intempestiva na frente de todo mundo.

 
At 14/4/08 7:17 PM, Blogger marianicebarth said...

Turini, vou seguir sua sugestão. Quase não mudei nada, apenas inverti.
Que acham agora vocês todos?

 
At 15/4/08 2:48 AM, Blogger caos e ordem said...

Parece que melhorou mesmo, mas não precisava se preocupar. Nunca tudo vai ficar talqualmente ótimo. Também depende do gosto de quem está lendo, uns gostam de cavalos outros de cães.
Dias atrás procurei dois enderecos no alto da Lapa e senti muito bem a dificuldade daquelas ruazinhas curvas e íngremes, até com o mapa na mão eu me atrapalhei (ainda bem que o aperto foi só isso.

 
At 15/4/08 6:44 AM, Blogger Polemikos said...

Ficou melhor .... eu sei que sou abusado ... mas tenta mais uma coisinha.

O texto que começa com "E então o Duque o largou etc ..." põe no fim mesmo!!!

Para o gran finale!!

 
At 15/4/08 1:17 PM, Blogger marianicebarth said...

Não, Turini, você não é abusado. Se estou aprendendo a escrever para leitores e a ser apreciada; e se estou querendo sugestões, é uma gentileza que vocês fazem. Obrigada...

E, Caos, obrigada também...
Eu já me perdi várias vezes maquele bairro e de cada uma disse a mim mesma que nunca voltaria...
(Nunca diga "nesse bairro não voltarei...) risos...

E a Primacaçula já está em São Paulo, logo veremos seus comentários.

Mas o Mesmeu, acho que foi para a Grécia...

 

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