segunda-feira, maio 12, 2008

Quem conhece Guerra Junqueiro?

Este poema dele é sobre um Cão com C maiúsculo, como todos os cães de alma pura.
Chamava-se Fiel, como os todos os Cães o são.


FIEL
(Um poema de Guerra Junqueiro. Conto poético. Reflexão).

Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
Havia o que quer que fosse
D’um íntimo desgosto :
Era um cão ordinário, um pobre cão vadio
Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
Percorria de noite os bairros da miséria
À busca dum jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
O velho cão uivava uma canção funérea,
Triste como a tristeza oceânica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente,
Ele ia-se abrigar às vezes nos portais ;
E mandando-o partir, partia humildemente,
Com a resignação nos olhos virginais.
Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas ;
Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada :
E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada.

Uma vez casualmente, um mísero pintor
Um boêmio, um sonhador,
Encontrara na rua o solitário cão ;
O artista era uma alma heróica e desgraçada,
Vivendo numa escura e pobre água furtada,
Onde sobrava o gênio e onde faltava o pão.
Era desses que têm o rubro amor da glória,
O grande amor fatal,
Que umas vezes conduz às pompas da vitória,
E que outras vezes leva ao quarto do hospital.

E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,
Disse-lhe : - "O teu destino é quase igual ao meu :
Eu sou como tu és, um proletário roto,
Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo ;
E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,
Eu não irei achar o meu primeiro amigo !..."

No céu azul brilhava a lua etérea e calma ;
E do rafeiro vil no misterioso olhar
Via-se o desespero e ânsia d’uma alma,
Que está encarcerada, e sem poder falar.
O artista soube ler naquele olhar em brasa
A eloqüente mudez dum grande coração ;
E disse-lhe : - "Fiel, partamos para casa :
Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. -"

E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heróicos puritanos,
Dividindo igualmente as privações e as dores.
Quando o artista infeliz, exausto e miserável,
Sentia esmorecer o génio inquebrantável
Dos fortes lutadores ;
Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança
Partir com uma bala a derradeira esp’rança,
Pôr um ponto final no seu destino atroz ;
Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,
Murmura-lhe : - Eu sofro, e a gente sofre menos,
Quando se vê sofrer também alguém por nós.

Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente :
"Um génio como tu, vivendo como um pária,
Agrilhoado da fome à lúgubre corrente !
Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,
Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar ;
Mas moravas tão alto ! E digo-o com franqueza
Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me ; a glória há de ajoelhar-te aos pés !..."
E foi ; e ao outro dia as bocas das Frinés
Abriram para ele um riso encantador ;
A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida
Como bela alvorada esplêndida, nascida
A toques de clarim e a rufos de tambor !

Era feliz. O cão
Dormia na alcatifa à borda do seu leito,
E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,
Ganindo com um ar alegre e satisfeito.
Mas aí ! O dono ingrato, o ingrato companheiro,
Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,
Já pouco tolerava as festivas carícias
Do seu leal rafeiro.

Passou-se mais um tempo ; o cão, o desgraçado,
Já velho e no abandono,
Muitas vezes se viu batido e castigado
Pela simples razão de acompanhar seu dono.
Como andava nojento e lhe caíra o pelo,
Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,
E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro,
E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,
Cuja carne servira aos dentes d’outro cão.

E ele era como um roto, ignóbil assassino,
Condenado à enxovia, aos ferros, às galés :
Se se punha a ganir, chorando o seu destino,
Os criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.
Quando exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
Das moscas das gangrenas.

Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,
Disse "Não morrerei ainda sem o ver ;
A seus pés quero dar meu último gemido..."
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.
E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,
E bradou com violência :
"Ainda por aqui o sórdido animal !
É preciso acabar com tanta impertinência,
Que esta besta está podre, e vai cheirando mal !"
E, pousando-lhe a mão cariciosamente,
Disse-lhe com um ar de muito bom amigo :
"Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,
Ainda que te custe anda daí comigo."

E partiram os dois. Tudo estava deserto.
A noite era sombria ; o cais ficava perto ;
E o velho condenado, o pobre lazarento,
Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento
O fundo soluçar monótono das águas.

Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira
Da corrente. E o pintor,
Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira,
Friamente cantando uma canção d’amor.

E o rafeiro sublime, impassível, sereno,
Lançava o grande olhar às negras trevas mudas
Com aquela amargura ideal do Nazareno
Recebendo na face o ósculo de Judas.
Dizia para si : "È o mesmo, pouco importa.
Cumprir o seu desejo é esse o meu dever :
Foi ele que me abriu um dia a sua porta :
Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer."

Depois, subitamente
O artista arremessou o cão na água fria.
E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente
O gorro que trazia
Era uma saudosa, adorada lembrança
Outrora concedida
Pela mais caprichosa e mais gentil criança,
Que amara, como se ama uma só vez na vida.

E ao recolher à casa ele exclamava irado :
"E por causa do cão perdi o meu tesouro !
Andava bem melhor se o tinha envenenado !
Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro,
Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,
Para tornar a ver o precioso objecto,
Doce recordação daquele amor tão puro."
E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.
Não podia dormir.
Até nascer da manhã o vivido clarão,
Sentiu bater à porta ! Ergueu-se e foi abrir.
Recuou cheio de espanto : era o Fiel, o cão,
Que voltava arquejante, exânime, encharcado,
A tremer e a uivar no último estertor,
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,
O gorro do pintor !

6 Comments:

At 12/5/08 9:20 PM, Anonymous Anônimo said...

Que saudades dos meus tempos de Científico. Depois do Grupo Escolar (4 anos) fui para o seminário (completei 13 lá no seminário). Aí tinha o Curso de Admissão, 3 anos de Colegial e mais 3 anos de Científico.
Um dos trabalhos- ao estudar literatura - foi decorar esta poesia de Guerra Junqueiro. Hoje não sei mais nada da análise literária, mas me lembro que esta era um exemplo perfeito de métrica, de rimas ricas, de figuras poéticas e tantas outras riquezas literárias. Valeu, Nice, nosso grupo continua se enriquecendo, vivenciando sentimentos, através da contribuição dos sábios participantes do blog "OSTENBARTH".Timtim

 
At 12/5/08 11:02 PM, Blogger marianicebarth said...

Se você teve até que decorar este poema, imagino que o Zecaos também... Será que ele decorou tudo até o fim? Porque olhe que é comprido, hein? Mas que também é lindo de chorar, é!

 
At 13/5/08 8:41 PM, Anonymous Anônimo said...

Não acredito que o Zeca tenha tido o mesmo professor de Literatura, pois a nossa diferença de idade é de mais de seis anos. O certo é que meu tempo de seminário foi muito enriquecedor. Devo muito aos padres holandeses, que eram ótimos educadores e sabiam motivar a gente. Timtim

 
At 18/5/08 9:20 PM, Anonymous Anônimo said...

PERDÃO, PAI, MAS COMPREENDE AGORA PORQUE AMO MAIS OS ANIMAIS QUE AS PESSOAS???

Quanto ao poeta... sem palavras!

 
At 8/8/08 4:22 PM, Anonymous Anônimo said...

Marianíce. Gostei do seu blog. Ainda mais da poesia FIEL DE Guerra Junqueiro.
Por outro lado, li seu artigo Antes de Maria Gilka e depois de Maria Gilka, publicado no livro "SOROcult COM" . Parabéns.
O.Donnini SP.8-8-008

 
At 8/8/08 4:25 PM, Blogger HeRnAnI ZaNIn JUniOR said...

Marianíce. Gostei do seu blog. Ainda mais da poesia FIEL DE Guerra Junqueiro.
Por outro lado, li seu artigo Antes de Maria Gilka e depois de Maria Gilka, publicado no livro "SOROcult COM" . Parabéns.
O.Donnini SP.8-8-008
oduvaldodonnini@terra.com.br

 

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