domingo, outubro 07, 2007

Uma Grande Paixão - XI

A vida trancorria leve e gostosa em casa de Mamãe e Papai.

Anna teve de mudar de cidade várias vezes para melhorar de vida. Nunca pediu ao ex-marido a obrigatória pensão de suas filhas. O nome dele se tornara proibido e elas não ousavam pronunciá-lo, para que a mãe não ficasse nervosa. Tinham perguntas, mas jamais as fizeram. Anna precisou deixar Carlota e Dina em casa de parentes até acertar tudo.
Uma dessas vezes Dina ficou comigo em casa de Mamãe. Tomei-me de amores por ela. Eu tinha três anos, ela cinco e meio. Era espertíssima, já lia correntemente sem nunca ter estado em escola alguma. Aprendera a ler sozinha.
Lembro-me que ela desenhava os próprios dedos num retalho de tecido branco, depois cortava e costurava à mão em volta, virava pelo avesso ficando a costura por dentro, formando um tubo. Em seguida enchia com chumaços de algodão e, na ponta desse tubo, desenhava com lápis de cor, preto, os olhos e com lápis vermelho, a boca sorrindo. Na cabeça que formara, colocava pedaços de fios de lã, como cabelos. Fazia algumas dessas “bonecas” para nós duas brincarmos e a maior era a Mãe. O dedo minguinho era a filha caçula. Esta é você, dizia. Eu ficava completamente extasiada com sua capacidade.
Fazia “mágicas”. Uma delas era tirar um comprimido de Cibalena de um anúncio na Revista Seleções. Ela dizia:
— Preste bem atenção. Está vendo este comprimido na revista?
— Estou...
— Vou fazer ele sair da revista e aparecer na minha mão! — eu acreditava piamente, fascinada. Ela dizia Abracadabra! E... tarááááá! O comprimido primeiro “saía” da revista e ganhava três dimensões, ela o pegava e me mostrava.
Brincávamos o tempo todo e eu a seguia por toda parte.
Um dia chegou um telegrama e Mamãe chamou as duas:
— Mariana e Dina, O Gustavo, seu pai, está para chegar.
Eu sabia quem era, mas nunca o vira. Era a primeira vez que apareceria. Dina fechou a cara.
— Não é meu pai! rosnou — e foi correndo para a casinha no fundo do quintal.
Corri atrás, curiosa. Nunca a tinha visto assim antes. Estava sentada num banquinho, segurando um joelho e olhando no vazio de sobrancelhas franzidas e olhar duro.
— Porque você está brava? — perguntei.
— Por que odeio esse homem. ELE NÃO É MEU PAI! Minha mãe me contou o que ele fez. Eu NÃO QUERO nada com ele.
— Mas eu quero — e queria muito mesmo. Todos falavam que ele era bom e bonito. E que era o pai das três.
— Então, fique com ele — disse ela. Mas então não quero mais brincar com você!
Ficou emburrada o resto do dia e foi dormir sem falar mais com ninguém.
Eu, pelo contrário, estava querendo que o dia terminasse, que a noite passasse e que o amanhã chegasse logo. Eu iria conhecer MEU PAI...

Dormi pouco e mal. E sonhei com ele, um homem alto, grande e um rosto que eu não conseguia ver direito. Que me pegou nos braços esticados e ficou olhando longamente para mim sem sorrir. Depois me colocou no chão e carregou a Dina. Acordei e não pude dormir mais.
Mal o dia amanheceu, eu já estava de pé, atormentando Mamãe com perguntas, que ela respondia com paciência. A Dina veio tomar o café e já estava normal, tinha acabado sua braveza, pensei, que bom, vamos brincar? E lá fomos nós para o quintal. Estava um dia quente e Papai tirou uma foto de nós duas, descabeladas e de pés no chão.
Dina estava contente porque tinha arquitetado uma maldadezinha: ensinou-me uma musiquinha corrente na época, sobre Pirapora, que tinha uma “palavra feia” no meio, que eu não conhecia. Eu gostava de cantar, todos em casa gostavam que eu cantasse, achavam bonitinho. E eu não era inibida até ali. Então, porque não? Iria agradar a todos...
— Quando o SEU PAI chegar, você vai cantar para ele, entendeu?
Fiz que sim com a cabeça. Eu confiava nela.

Logo depois do almoço ele chegou.
Só me lembro de um homem muito, muito grande. Mas não me pegou nos braços, como no sonho. Quis carregar a Dina, mas ela correu para o quintal. Ele ficou muito corado e muito sem graça. Trazia dois pacotes e me estendeu um deles, uma bonequinha de celulóide, muito feinha, cor-de-rosa.
— Agradeça, Mariana — disse Mamãe. E muito baixinho, só para meus ouvidos:
— Olhe a educação, não me faça passar vergonha...
— Muito obrigada — disse eu.
— Esta outra é para a Dina — disse ele, muito corado ainda.

Sentaram-se todos no quintal, numa roda de cadeiras. Eu fui ter com a Dina:
— Ele trouxe esta boneca. Tem uma para você também.
— Não quero! Não aceito NADA dele! Ele não é nada meu. Odeio ele! Vá para lá, vá cantar para ele! Mas de repente ela sorriu e perguntou: Lembra da música? Cante pra mim, quero ver se você sabe!
Eu queria olhar para ele mais uma vez, ver direito seu rosto, mas a roda estava meio fechada, os adultos estavam conversando. Então resolvi o problema, entrando por baixo da cadeira da Eva. Fiquei bem no meio da roda e cantei bem afinadinha a música que a Dina ensinara.
Aí aconteceu uma coisa horrível: todos ficaram em pé ao mesmo tempo, horrorizados. E ele, Gustavo, meu pai bonito, estava vermelho como um tomate! Só Papai, a mão em concha no ouvido, perguntava O que foi? O que ela fez? Hermínia, o que foi?
E eu, também muito vermelha, não estava entendendo nada.
— O que foi que eu fiz? — perguntei num fiozinho de voz, pois já adivinhara que devia ter sido uma barbaridade. Mamãe, Gustavo, Eva, Santa, Belinha e Pique permaneciam em pé, esta última com a mão na boca.
Mamãe, os olhos arregalados, foi a primeira a se recobrar da vergonha incrível que sentiu. Passou a mão em mim e me levou para o quarto, dizendo a pior frase que sabia dizer: — Vamos conversar! Eu morria de medo quando ela dizia isso com aquele tom de voz. E, ao chegar ao quarto, olhei para ela e vi o pior: suas sobrancelhas unidas e entre elas, “o triângulo da catástrofe”.
— Como você pôde nos envergonhar desse jeito? Falar aquele nome! Na frente de SEU PAI! Que vem aqui pela primeira vez! O quê ele vai pensar? Que não sei educar você direito? Que somos “desqualificados”? Mamãe só usava essa palavra para pessoas que faziam coisas realmente horríveis. Fiquei apavorada.
Nesta altura eu já havia entendido que havia na canção alguma palavra “feia”, mas não sabia qual era, de tudo o que cantei qual a palavra proibida, mas não podia perguntar a ela, pois não o diria, nem poderia contar a ela que a Dina me havia ensinado e mandado que eu cantasse aquilo para ele como uma homenagem, pois Mamãe não a perdoaria e eu não queria que ela ficasse brava com a Dina, como estava comigo.
— Me perdoe, Mamãe, me perdoe! Nunca mais canto aquela música!
— Quem ensinou você?
— Eu ouvi... não sei onde... na rua...
— Não tem de ficar repetindo tudo o que escuta por aí! Você vai ficar de castigo, por uma hora!
“Uma hora”? — pensei... “Quanto tempo será isso? Será pouco? Não, é um castigo, deve ser um dia inteiro"... Não me atrevi a falar mais nada.

Não o vi mais, o meu pai bonito. Ele foi embora sem se despedir de mim. Eu estava desolada. “Fiz uma coisa horrível, desqualificada, e ele não gostou, por isso foi embora”...
Agüentei o castigo, que era ficar imóvel, sentada numa cadeira dura e reta no quarto, até não poder mais. Mas eu nunca conseguia ficar parada por muito tempo. Então balançava as pernas para frente e para trás, para frente e para trás, juntas, alternadas, juntas, alternadas, para passar o tempo. Sem querer, comecei a cantar baixinho e, para meu horror, percebi que era a música proibida. Quase caí da cadeira de susto. Mãos na boca, morri de medo que alguém tivesse ouvido. E fiquei absolutamente imóvel novamente. Ninguém apareceu, ninguém ouviu, ufa! Cruzei as pernas e me recostei. Cochilei e quase caí novamente.
Ninguém podia vir ao quarto, era proibido. Só Mamãe, quando passasse toda a “uma hora”.

Depois de um tempo enorme, fui libertada. Mamãe ainda estava com “o triângulo” na testa... Não me atrevi a falar, nem perguntar nada.
— Vá jantar. Todos já estão na mesa. E COMA TUDO!

Obedeci rapidinho.

14 Comments:

At 7/10/07 10:35 PM, Blogger marianicebarth said...

Por favor, que ninguém pense que estou reclamando da severidade de Mamãe. Ela sempre estava certa, em seu modo de entender. Criou-me como fora criada, rigidamente. Era um verdadeiro doce de pessoa, mas fazia questão de que seus filhos (e tenho muito orgulho de poder estar entre eles) seguissem as suas regras de educação e moral.
Ser mãe é isso, é ter a coragem de exigir dos filhos que eles sejam o melhor de si mesmos.

 
At 8/10/07 4:34 AM, Blogger caos e ordem said...

Agora vou sair pesquisando: ce conhece uma musiquinha antiga que fala em Pirapora e tem um palavrão no meio? Pergunto pro Shiost, pra Lucy, pro Timtim e pra outros também.
Ou será que a Nice vai contar? Será que se tornou uma adulta de tão bons modos e educação?
Ter bons modos é simples como o Joãozinho dizendo que a vaca tem quatro pernas e as mulheres tem duas, que céu é a palavra que começa com c e termina com u, que as mulheres tem o cabelo enroladinho na África e tantas outras sabedorias.

 
At 8/10/07 2:28 PM, Anonymous Anônimo said...

Esse capítulo quase me matou por falta de ar. Estava lendo tudo num fôlego só. Voltei a ler sobre Pirapora, pra ver se descobria a "palavra feia", mas nada. Espero que a Nice revele a tal palavra, nem que seja em "off". Entre as coisas admiráveis desta narrativa, estou achando o máximo o artifício de nominar "Papai" e "Mamãe", distinguindo-os do Luiz e da Ana e deixando muito claro o papel deles nos acontecimentos. O capítulo está mesmo de perfer o fôlego.

 
At 8/10/07 4:00 PM, Blogger marianicebarth said...

O nome feio não vou falar, mas a Musiquinha começava assim:

Eu vou-me embora
Pra Pirapora
Comendo amora

e o resto não posso dizer...
Era uma musiquinha de quatro estrofes que, depois disso descobri, todas as crianças sabiam e os adultos também, mas como naquele tempo tudo era proibido e censurado, tudo era escondido e velado, todos fingiam que não sabiam. Timtim, você é do meu tempo. Nunca ouviu uma musiquinha começada assim? Nem você, Caos? Quem sabe o Shiost...

 
At 9/10/07 10:41 AM, Anonymous Anônimo said...

Eu não conheço a musiquinha, mas arrisquei completar a trova:
"Eu vou-me embora
Pra Pirapora,
Comendo amora e
cagando pela estrada afora.
Que apareçam outras rimas, até descobrirmos o "PALAVRÃO".

 
At 9/10/07 12:33 PM, Anonymous Anônimo said...

O mais interessante da narrativa eh que gera toda essa conversacao e tentativa de descobrir o resto da musica! Minha mae eh muito educada pra dizer o resto.

Vou-me embora
Pra Pirapora
Comendo Amora
Peidando a fora

Quetal essa versao?
Filha
Chris

 
At 9/10/07 9:36 PM, Blogger marianicebarth said...

E você não é educada, Menina sem jeito de gente? Que feio! Não se fala assim perto de padres! Pelo menos poderia ter dito "soltando um pum"... Onde já se viu isso? Vai ficar de castigo sentada imóvel na cadeira dura por uma hora!
Mas você foi a que chegou mais perto. Acertou a última palavra: fora.
E eu também não sabia que padres usavam verbos escatológicos...

 
At 9/10/07 10:07 PM, Anonymous Anônimo said...

Pronto, com esta dica, arrisco mais uma rima:
Eu vou-me embora,
Pra Pirapora,
Comendo amora,
Com a bunda de fora.

 
At 9/10/07 10:46 PM, Blogger marianicebarth said...

Timtim, você quase acertou, só errou a tal palavra, que é mais ou menos sinônimo...
Mesmo assim, hoje em dia não seria tão horrível, não é?

 
At 10/10/07 10:49 PM, Anonymous Anônimo said...

Como também sou 'educada" arrisco apenas que a palavra seria o que o Zecão disse sobre o o céu? Começa com C e termina com U?

 
At 11/10/07 9:49 AM, Blogger marianicebarth said...

Primacaçula adivinhou.

 
At 11/10/07 7:29 PM, Anonymous Anônimo said...

Depois de tantos chutes,não haveria necessidade da lâmpada de Aladim ou da varinha de condão!

 
At 17/10/07 10:15 PM, Anonymous Anônimo said...

Então vamos fazer uma homenagem à declamadora e publicar a trova completa:
"Eu vou-me embora
Pra Pirapora,
Comendo amora
Com o cu de fora"

 
At 3/12/12 1:39 AM, Blogger marianicebarth said...

Que vergonha, meu Deus!

 

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