sábado, setembro 06, 2008

"O Desejo e o Objeto de Amor"

No "Pêndulo de Foucault", de Humberto Ecco, na página 62, o instigante personagem Belbo em certo trecho expõe esse grande impulso da vida. Transcrevo aqui grande parte desse capítulo, literalmente:
"Durante as longas tardes na editora Garamond, vez por outra Belbo, oprimido por um manuscrito, erguia os olhos das folhas e procurava distrair também a mim, que estava por acaso paginando na mesa de frente velhas gravuras da Exposição Universal, e se entregava a algumas reevocações — tratando logo de baixar o pano quando suspeitava que o tomasse muito a sério. Reevoca o próprio passado, mas só a título de exemplum, para castigar alguma vaidade. "Eu me pergunto onde iremos acabar", disse-me ele um dia.
"Fala-me do ocaso do ocidente?"
"Ocaso? Afinal de contas é sua função, não é mesmo? Não, falava dessa gente que escreve. Três originais numa semana, um sobre direito bizantino, outro sobre Finis Austriae e o terceiro sobre os sonetos de Baffo. São coisas bem diversas, não lhe parece?"
"Parece."
"Pois bem, quer saber que em todos três aparecem a certa altura O Desejo e o Objeto do Amor? É moda. Compreendo que ainda o Baffo, mas o direito bizantino..."
"Ponha no lixo."
"Não, são trabalhos inteiramente financiados pelo Conselho Nacional de Pesquisa, e além disso nada maus. No máximo chamo esses três e pergunto se não podemos tirar essas linhas. Até eles podem fazer má figura."
"E qual pode ser o objeto de amor no direito bizantino?"
"Oh, há sempre uma maneira de fazê-lo entrar. Mas decerto se no direito bizantino havia um objeto de amor, não será aquele que diz este aqui. Não é decerto aquele."
"Aquele qual?"
"Aquele que você pensa. Certa vez, eu devia ter cinco ou seis anos, sonhei que havia ganho uma corneta. Dourada. Sabes, um desses sonhos em que sentimos o mel correr-nos nas veias, uma espécie de polução noturna, como a possa ter um impúbere. Acho que nunca fui tão feliz na vida quanto naquele sonho. Nunca mais. Naturalmente, ao despertar, percebi que não tinha a corneta e me pus a chorar como um bezerro. Chorei um dia inteiro. Na verdade, aquele mundo de antes da guerra, aí por mil novecentos e trinta e oito, era um mundo bem pobre. Hoje se eu tivesse um filho e o visse assim desesperado lhe diria pára com isso, vou te comprar uma corneta — tratava-se de uma corneta de brinquedo, nada que pudesse custar os olhos da cara. Isso nem sequer passou pela cabeça de meus pais. Gastar dinheiro era, então, uma coisa muito séria. E mais sério ainda era educar as crianças para não terem tudo quanto desejavam.

Naquela tarde deviam chegar os tios de ***, não tinham filhos e eu era o sobrinho predileto. Vêem-me chorar por causa do raio da corneta e dizem que resolverão tudo, que no dia seguinte iremos ao magazine onde havia um balcão inteiro de brinquedos, uma maravilha, e lá encontrava a corneta que queria. Passei a noite em claro e estive indócil toda a parte da manhã. De tarde fomos ao magazine, e de fato havia cornetas de pelo menos três tipos, que talvez não passassem de brinquedinhos de lata mas que me pareciam os metais da orquestra da ópera. Havia uma corneta militar, um trombone de vara e uma pseudotrompa, porque tinha bocal e era de ouro mas com chaves de saxofone. Não sabia qual escolher e talvez tenha levado muito tempo nisso. Queria todos e dei-lhes a impressão de não querer nenhum. Entretanto achei que os tios haviam olhado as etiquetas de preço. Não eram mesquinhos, mas tive a impressão de que achavam mais barato um clarim de baquelite, todo preto, com chaves de prata. 'Você não prefere em vez este?' perguntaram. Eu o experimentei, balia de modo razoável, procurava convencer-me de que era belíssimo, mas na verdade raciocinei e acabei me convencendo de que os tios queriam que eu escolhesse o clarim porque custava menos, a corneta devia valer uma fortuna e não podia impor aquele sacrifício a eles.
Haviam-me ensinado sempre que quando te oferecem alguma coisa deves imediatamente dizer não obrigado, e não uma só vez, não dizer não obrigado e estender logo a mão, mas esperar que o ofertante insista, que diga por favor. Só aí então a criança educada cede. Por isso disse que talvez não quisesse a corneta, que o clarim podia muito bem me servir, se eles preferissem. E os olhava de cima a baixo, esperando que insistissem. Não insistiram, Deus os tenha na santa glória. Estavam muito contentes por me comprarem o clarim — disseram — já que eu o preferia. Era muito tarde para voltar atrás. Fiquei com o clarim."
Senti seu olhar de suspeita: "Quer saber se sonhei depois com a corneta?"
"Não", disse, "quero saber qual era o objeto de amor."
"Ah", disse, voltando a folhear o manuscrito, "veja, até você está obcecado por esse objeto de amor. Esse assunto se pode manipular à vontade. Mas... E se eu tivesse de fato ganho a corneta? Teria sido realmente feliz? Que me diz disso, Casaubon?"
"Talvez começasse a sonhar com o clarim."
"Não", concluiu secamente. "Eu só ganhei o clarim. Não creio que o tenha soado."
"Soado ou sonhado?"
"Soado", disse escandindo a palavra e, não sei por quê, me senti um bufão.

19 Comments:

At 6/9/08 1:17 PM, Blogger marianicebarth said...

É curioso como algumas idéias num livro podem tocar a gente em pontos profundos e esquecidos da memória, acordando fantasmas há muito adormecidos e levantando fumaças de brasas há muito esfriadas.
Belbo e o desejo ardoroso por seu objeto de amor, o sonho não realizado de uma corneta dourada doloridamente substituída por um clarim negro de baquelite por por ter sido uma criança educada à maneira dos velhos tempos, tocou alguns pontos empoeirados de minha memória antiga.
É um tema muito interessante que gostaria de discutir com vocês, caros amigos.
Gostaria de saber se acontece o mesmo com vocês e se tiveram alguma experiência parecida.

 
At 6/9/08 9:13 PM, Anonymous Anônimo said...

Decididamente o Saramago (o estilo Saramago) não é o meu fraco. Mas valeu para trazer a prima Nice de volta ao blog. Sem lamentações, devo dizer que tive uma infância muito privada de tais lembranças - em outras palavras - uma infância bem carente mesmo. Pelo menos carente de brinquedos sofisticados.Não tenho consciência de que tais privações tenham afetado minha personalidade.
Ou melhor, acho que o meu lado "São Francisco, protetor dos pobres" foi moldado naqueles tempos.
Fico aguardando novas páginas de suas reminiscências.

 
At 7/9/08 6:32 PM, Blogger marianicebarth said...

Eu também não tive infância rica, Timtim, mas objetos de desejo e de amor, daqueles que fazem o coração bater mais forte, tive alguns sim e gostei de me lembrar deles. Alguns foram sonhos impossíveis, como o cavalo de verdade que desejei muito aos cinco anos e que ficaram entre as "loucuras de criança".
Gostei de lembrar porque eu realmente era imune a desejos caros. Lembro-me de num natal, ao ser solicitada para fazer meu pedido, a muito custo quis apenas uma joguinho de damas, bem baratinho...
Mas há pouco tempo, em NY, vi duas echarpes de lã, largas e compridas, para agasalhar no gelado inverno novaiorquino. Uma delas, em tons de preto e cinza, parecia um vison e por qualquer motivo desconhecido encheu meus olhos e eu a desejei com tanta força (maravilhosa, mas não era cara, nunca desejo de verdade nada caro...) que sonhava com ela, desejando-a a um ponto nunca antes sentido , tanto, tanto, que resolvi voltar à loja e comprá-la e ao decidir meu coração pulava por antecipação... Mas quando chegamos à loja, Chris e eu, já tinha sido vendida... Acredite, cheguei a sentir "dor" de frustração e arrependimento de não ter comprado na primeira vez. Tive de me contentar com a outra cor, mas nunca foi a mesma coisa. Por isso o caso da corneta me impressionou.
Como pude ser assim tão fútil desejando uma boba coisa material?

 
At 7/9/08 11:02 PM, Anonymous Anônimo said...

Pois é, prima Nice!
Em primeiro lugar, que bom que voltou ao nosso convívio!
Coisas como essa de NY acontecem e nos surpreendemos talvez por sabermos que de repente surge em nós um "detalhe" desconhecido!
Nunca tive sonhos com algo assim tão almejado! Me parece que fiquei muito frustrada com um ano de idade quando ganhei um bonequinho que sumia perto do da minha irmã.
Segundo a mamãe, atirei-o longe, mas não me lembro disso!
Talvez tenha querido alguém quando era bem jovem e não fui correspondida; mas isso passou como um avião a jato e o Gil chegou mais rápido ainda!

Ah! Queria dizer ao Timtim que amo São Francisco e sei muito sobre ele. Desconfiava que também o amava!Agora tive certeza!

 
At 9/9/08 2:51 PM, Blogger Polemikos said...

Sim, tive objetos de desejo ... mas não lembro disto em minha infância ... talvez por saber que não tinhamos "direito" a isto naquelos idos.

Mas lembro dos meus quarenta anos e dos objetos de desejo, alguns pelos quais batalhei e consegui ... e outros que simplesmente sumiram do desejo porque não resistiram ao desgate do tempo de espera ...

 
At 9/9/08 7:31 PM, Blogger marianicebarth said...

Parece que nossos sonhos vão se esvaindo com o tempo... O cavalo, por exemplo, que desejei tanto aos cinco anos esfumou-se completamente e principalmente percebi que montar um começava a ficar difícil... Na última vez que resolvi dar um passeio a cavalo na fazenda dos tios precisei da ajuda constrangedora dos peões... (risos...)

 
At 10/9/08 4:07 AM, Anonymous Anônimo said...

Gosto do jeito franco da Nice contar suas histórias. Essa da echarpe foi magistral e serviu para eu entender melhor o significado de "objetos de desejo e de amor". Não me lembro de frustrações por objetos desejados. Amor frustrado tive um só, mas tal qual a "primacaçula", esse mesmo amor provocou o aparecimento da Antonina e a frustração se enfraqueceu.
Agradeço por não terem criticado meu engano, confundindo Humberto Ecco com Saramago. Escreva mais, Nice. Timtim .P.S. Que bom que a Nice me identificou, mesmo sem eu ter assinado o "coment" anterior.
Que bom também que a minha "Irmã Lua" curte São Francisco. Não por acaso meu filho se chama Francisco Afonso. (Enquanto criança ele não gostava do nome - Chico - mas agora, nos seus 34 anos, é devoto do Santo e tem uma pequena coleção de "São Franciscos". TIMTIM

 
At 10/9/08 5:36 PM, Blogger marianicebarth said...

Também gosto muito de São Francisco. Será que haverá quem não goste? Quando estivemos em Assis, lembro-me de uma emoção tão forte que entrei chorando na cidade ao pensar que estava pisando as mesmas pedras que ele. Chorei de emoção o tempo todo e saí de lá em lágrimas, mas não sem ter comprado uma pequena imagem dele, feita de madeira, que fica no meu quarto, velando por nós.

 
At 10/9/08 7:38 PM, Anonymous Anônimo said...

Continuo encantado com sua sensibilidade. Acredito que foi mesmo muito emocionante visitar Assis. Eu também conheço Assis... aí no estado de S.Paulo. Timtim

 
At 11/9/08 2:22 AM, Blogger marianicebarth said...

Ah ah ah ah ah!!!!! Timtim, você é o máximo!! Como gostaria de bater um longo papo com você frente a frente! Quando vai ser isso?

 
At 11/9/08 9:43 PM, Anonymous Anônimo said...

Continuo me prometendo que será neste 2008. Quem sabe em outubro!? Eu quero muito. Timtim

 
At 13/9/08 5:18 PM, Anonymous Anônimo said...

SEGREDO!!! AGORA COMEÇO A ENTENDER, PRIMA-TIA, PORQUE GOSTO MUITO DE VC.

Com essa sensibilidade franciscana, Timtim, você não precisava mesmo assinar o comentário, "IRMÃO SOL".

Tenho um texto lindo sobre isso que enviarei por e-mail a vocês que amam S. Francisco.

Também gostaria desse "papo" que a Nice quer! Olha que 2008 já acabará, heim?

 
At 15/9/08 5:53 PM, Anonymous Anônimo said...

SERÁ EM 2008. Vcs têm viagens programadas para final de outubro?
Já começo a somhar. Timtim

 
At 16/9/08 8:11 AM, Blogger Polemikos said...

Eu tenho. Vou ver minha filha que vai passar por operação e estarei de volta no final de Novembro.

 
At 16/9/08 1:15 PM, Blogger marianicebarth said...

Temos uma viagem programada para outubro, com a turma do clube, mas não sei o dia e nem sei se poderemos ir.
Tomara que dê certo para Limeira.

 
At 16/9/08 8:54 PM, Anonymous Anônimo said...

"Questa la vita" "Porca miseria"!
Quando um pode o outro não pode. Mas, o que se há de fazer? Eu mesmo, quando planejei final de outubro, não sabia que no dia seguinte (hoje/16/09), receberia a notícia de que a Antonina necessita fazer outro cateterismo e... talvez outro "stent"
Com certeza esta segunda quinzena de setembro será agitada e plena de incertezas. "C'est la vie". Se não for em outubro, será em novembro. Querendo Deus. Timtim

 
At 17/9/08 10:22 PM, Anonymous Anônimo said...

Envie a Antonina os meus votos sinceros de que tudo corra bem. Estarei orando por ela!

Desejo o mesmo à sua filha, Turini.

É bom este encontro tardar. Fica mais emocionante ainda.

 
At 19/9/08 3:03 AM, Blogger marianicebarth said...

Desejo que a Antonina e a filha do Turini sejam muito bem sucedidas nas intervenções.
Então será talvez em dezembro o grande encontro! Deus queira!

 
At 27/9/08 7:43 AM, Blogger Polemikos said...

Será que o desejo (não realizado) do objeto do amor é o fim?

Você não nos brinda com mais nada desde o (último) apito do trem!!! (

Volta, Nice ...

 

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