terça-feira, setembro 30, 2008

O Giz

Lembro-me como se fosse hoje dos inúmeros "burro" escritos na lousa...


O caso do pinhão foi ficando para trás, lá num cantinho em preto e branco dos meus "crimes e castigos", pendurados um ao lado do outro, num recinto escuro e o mais possível escondido da minha vergonha.
O tempo foi passando e chegou a hora do Pré-primário.
Não me lembro de quase nada das aulas, mas sei que aprendíamos a ler e escrever nossos nomes e algumas palavras, além de colorir algumas figuras e desenhos.
E adorávamos quando, depois de ensinar palavras com dois erres, a professora perguntava: — Quem sabe escrever a palavra garra? (ou terra, ou serra, ou birra etc.)
Eu sempre estava entre os que levantavam a mão.
— Podem ir à lousa.
Era uma correria.
E gostávamos mais ainda quando ela fazia uma competição:
— Vão à lousa cinco alunos. Cada um pegue um giz. Quem é capaz de escrever mais rápido a palavra berro?
Nesse dia, lembro-me como se fosse hoje, depois de muitas com dois erres, a palavra pedida por último foi burro. Vendo que os pedacinhos minúsculos de giz estavam acabando, ela despejou outros de uma caixa e entre eles caiu um giz inteiro.
Mas nesse instante soou o sinal do fim da aula e todos debandaram. Todos, menos eu, extasiada que fiquei perante a verdadeira maravilha que ficara no aparador da lousa: um GIZ INTEIRO! Branco, puro, brilhante, afunilado, que lindo!... Peguei-o e senti sua textura macia, aveludada, olhei cada extremidade, a mais larga ligeiramente côncava, revirei-o entre os dedos com cuidado, com muito carinho, enfeitiçada. O universo inteiro, naquele momento mágico, estava contido naquele giz...
Imediatamente, assim que comecei a emergir do encantamento, pensei em mostrá-lo a alguém, precisava compartilhar aquela beleza, precisava ver o assombro nos olhos de alguém, como acontecera comigo.
Então coloquei o frágil GIZ INTEIRO no bolso do aventalzinho de organdi branco que cobria o uniforme da escola, peguei a mala com o material e andei para fora da classe bem devagar para não quebrar o tesouro.
Devo ter demorado muito, pois não havia mais nenhum coleguinha no pátio, nem na frente da escola, ninguém para dividir a magia...
A caminho de casa, fui pensando que a Mamãe iria se admirar com o GIZ, por estar inteiro. Isso mesmo, eu podia dividir com ela! Quem melhor do que ela merecia se encantar com a preciosidade? Minha expectativa aumentou e o coraçãozinho já estava em júbilo!
Chegando à casa já fui chamando:
— Mamãe, mamãe, veja o que eu trouxe! E fui tirando devagar e com cuidado o incrível GIZ INTEIRO do bolsinho do avental. E o mostrei triunfante.
Mas ela não reagiu como o esperado. Apenas perguntou:
— Onde você arrumou isso?
— Isto? É um GIZ INTEIRO, Mamãe! A senhora já viu um giz inteiro? Não é lindo?
— Hummm... Foi a professora quem lhe deu?
Um alarme começou a soar no meu cérebro e alguma vaga lembrança de algo desagradável se insinuou. E de repente chegou-me à memória o caso do pinhão. Gelei.
— Não, estava na lousa para a gente escrever e aí deu o sinal e saíram todos, a professora também e eu nunca tinha visto um giz inteiro... e peguei... para mostrar para alguém, mas não tinha mais ninguém... Ao falar isso me dei conta de que fizera de novo... Baixei os olhos para não ver o rosto da mamãe com o fatal triângulo na testa, pois com certeza ele estava lá. Eu caíra de novo na mesma barbaridade.
O silêncio foi crescendo. Ela não dizia nada. Criei coragem e olhei para cima, para os seus olhos. Suas sobrancelhas estavam unidas (o terrível triângulo lá estava), mas ela demonstrava uma profunda tristeza.
— O que eu faço com você? Roubou de novo! Não consegui ensinar da outra vez? Não aprendeu? Não percebeu o quanto é desprezível “tirar” alguma coisa, “qualquer coisa” que não seja sua? Quem rouba, mente! E quem mente está roubando de outro a coisa mais importante que existe que é a confiança!
E mamãe chorou. Suas lágrimas caíam e ela soluçava baixinho. Sacudia a cabeça de um lado para o outro e apertava as mãos. Foi demais para mim. Eu estava horrorizada. Eu faria qualquer coisa, qualquer coisa para apagar de seu rosto tal tristeza, e de seus olhos, aquelas lágrimas.
De repente ela se recompôs e sentenciou firmemente:
— Você irá devolver amanhã esse giz à professora. Vai dizer: “Eu vim devolver este giz que eu ROUBEI. Por favor, professora, desculpe-me!”
Acenei várias vezes com a cabeça, concordando. Eu realmente faria qualquer coisa e isso era o mínimo.
— Nunca mais, mamãe, nunca mais tiro nada de ninguém, de nenhum lugar, mas não chore, por favor, mamãe, não chore...
Ela colocou o giz sobre minha maleta e lá ele ficaria até o dia seguinte, inteiro, mas agora reduzido à sua verdadeira aparência, branco, opaco, sem graça, sem beleza e sem magia...

20 Comments:

At 1/10/08 1:27 PM, Blogger marianicebarth said...

O desenho foi feito agora, no Paint... O Shiost não se conforma de que eu use um programa tão antigo... Mas já vou instalar o Corel e começar a experimentar... Mas o Paint é tão simplies...
Esse desenho do quadro negro está gravado em minha memória quase exatamente como o desenhei aqui.

 
At 1/10/08 2:37 PM, Blogger irmãcaçula said...

Que coisa incrível!
Será que hoje um criança de 5 anos (?) de idade se fascina por um giz inteiro?

É, minha prima, antigamente os pais criavam seus filhos assim; não apenas o vovó, mas a mamãe, o papai e etc. Tio Décio era considerado liberal demais com os filhos, quase um "bôbo"!
E veja que interessante: apesar disso, dessa magnanimidade dos meus tios, quase inexistente naquela época, meu primo não conseguiu dar continuidade à sua vida aqui na Terra!
Talvez esteja no inconsciente, mas não me lembro de coisas que me marcaram assim; talvez por eu ser a "caçulinha"!?

 
At 1/10/08 9:03 PM, Anonymous Anônimo said...

E eu, bobo, achando que a história do GIZ, se reduziria a um simples relato de que a Nice, pegou um pedaço de giz, na escola. Que descrição! Há muitos anos eu não vejo um giz inteiro. Eu o vi hoje, branquinho, afunilado, a extremidade côncava!
Que descrição! E a mãe aflita, apertando as mãos. Tenho que conhecer esta Nice, ainda neste 2008.
Agora vou ficar aguardando a inauguração do Corel, porque sei que virão coisas lindas. Timtim

 
At 1/10/08 10:12 PM, Anonymous Anônimo said...

É mesmo, Timtim.
Parece que o giz quer sair da tela do computador!
Eu os vejo sempre, mas parece que este é único e especial. O giz da Marianice!

 
At 2/10/08 6:30 AM, Blogger Polemikos said...

Nice. A tua mãe estava certa e ... errada, ao mesmo tempo.

A Beleza não pertence a ninguém : ela, portanto, não pode ser roubada!!!

 
At 3/10/08 12:11 AM, Blogger marianicebarth said...

acontece, Turini, que a beleza extasiante do "incrível" giz inteiro estava a arder apenas na minha cabeça e quando foi reduzido à sua verdadeira proporção, perdeu a magia...para mim. Essa magia de ver as coisas com olhos encantados continua comigo até hoje, mas o giz foi doloridamente devolvido com a frase ritual. Doloridamente por ter sido na frente dos coleguinhas, numa situação humilhante.
Mas, por outro lado, aprendi duas coisas:
1) reconhecer meu erro e penitenciar-me por ele...
2) ter medo do ridículo, mas enfrentar a situação (o que não é pouco!).
Creio que comecei a crescer espiritualmente nesse dia...

 
At 3/10/08 6:45 AM, Blogger Polemikos said...

Nice, só existe pecado se existir a consciência e a intenção de fazer o mal ... senão, é apenas uma "violação" do comportamento civil politicamente correto!!!

muita gente acaba criando e carregando sentimento de "culpa" por mero condicionamento social ... e não por erro real de atitude moral.

Defendo a espontaneanidade da menina Nice - de todos os garotos e garotas desta idade - com unhas e dentes!!!

 
At 4/10/08 11:13 AM, Anonymous Anônimo said...

Viva Turini, suas ponderações filosóficas são muito pertinentes.
É comovedor ouvir(ler) da Nice que o seu crescimento espiritual começou lá nos 4 anos de idade. É por isso que hoje é esta NICE, que nós tanto admiramos.É bom também ler que a Nice mantém o "ver" com olhos encantados. Timtim

 
At 4/10/08 7:13 PM, Blogger marianicebarth said...

Vocês são mesmo ótimos! Mas naquele tempo (nos tempos do "Onça"...) a educação era muito rígida mesmo e nunca me importei com isso, quero dizer, era assim e pronto.
Concordo com você Turini, que era uma forma até exageradamente repressiva de educar e as crianças realmente não tinham muitos direitos. Dedos eram apontados sem possibilidade de resposta.
Se por um lado, criava-se crianças bem comportadas, por outro tolhia-se demais a iniciativa própria. Não havia discussão!
A "gente pequena" era reprimida pela "gente grande" nas menores demonstrações de espontaneidade, mas como era regra geral, isso era aceito pelos baixinhos mais ou menos numa boa... Não causava muito sofrimento não...
Mas quando um adulto querido chorava, aí pegava pesado...
Os tempos de hoje, porém, são permissivos demais, num extremo oposto, concorda? Não há firmeza na educação de crianças pequenas, de um modo geral. Vemos todos os dias crianças pequeninas fazendo manha, birra, batendo o pé e gritando com os pais, chutando, quando não batendo no rosto da mãe.
Acho isso mais do que horrível. Não gosto de presenciar tais cenas. E vocês, o que pensam a respeito? Como deveria ser?

 
At 4/10/08 7:15 PM, Blogger marianicebarth said...

Também não quero dar a impressão errada de que fui judiada, porque não seria verdade. Fui até mimada, na opinião de toda a família...

 
At 4/10/08 9:06 PM, Blogger irmãcaçula said...

Você já pensou, Nice que as pessoas criam seus filhos pensando em fazer o melhor? E o que é certo ou correto na educação deles? Temos que levar em considaração que eles também quem sabe, formam educados dessa forma.
Em relação a se sentir com essa culpa toda, acho que tem a ver com a personalidade de cada um. Se lembra como a minha irmã enfrentava o Vital (meu pai) que vc. temia tanto? Ela falava a ele o que pensava e duvido se alguma vez se sentiu culpada de algo! Quanto a vovó chorar, veja como estava encutida dentro dela essa rigidez com que tb. deve ter sido criada.

 
At 4/10/08 9:24 PM, Anonymous Anônimo said...

Vamos ao assunto educação. Me aposentei como professor de Psicologia da Educação, no Curso de Pedagogia. Defendi e continuo teorizando que: quando se educa com amor, mesmo errando, o resutado é bom e os erros são perdoados. Não posso dizer que pes2uisei sobre o assunto, é apenas experiência pessoal.Meus pais - leia-se minha mãe - errou muito, com castigos severos e muita rigidez.Mas a gente podia sentir que havia amor e esta convicção se firmou com o passar dos tempos, com a maturidade, com a experiência própria de ter filhos e dever educá-los.
Lembro-me de uma vez em que minha mãe me castigou com uma surra, mas antes teve uma conversa comigo e me bateu chorando. Estava errada, mas bem intencionada e o efeito foi positivo..... Também aprontei muito.Timtim

 
At 5/10/08 7:57 PM, Blogger marianicebarth said...

Gente!!!!
Não sinto culpa alguma, de onde vocês tiraram isso? Apenas narrei a maneira como mamãe corrigiu um comportamento que todas as criancinhas têm de pensar que tudo que está na frente de seus olhinhos é delas ou para elas. O fato dela ter dito que era roubo estava dentro do conceito correto. Se uma criancinha não conhece esse conceito é preciso ensinar a ela!
Nunca duvidei do amor de mamãe, pelo contrário!
Mas devo ter dado a vocês a impressão de ter ficado magoada, o que é totalmente falso! È óbvio que mamãe tinha sido criada assim, da maneira mais rígida e me passou o que havia sido passado a ela.
Se chorou, foi por pensar que teria de me castigar e ela sempre chorava disfarçadamente depois de me dar algum castigo. A vez em que mais chorou e mais sentidamente foi quando me deu umas palmadas e depois se lembrou de que era dia do meu aniversário... Tadinha!!! Correu para mim e me abraçou, beijou e dise: "Ai, meu Deus, eu te bati no seu aniversário! Mas você mereceu, não é mesmo?" O quanto eu a amava e a saudade que sinto até hoje não tem tamanho...
Primacaçula, apenas estou contando minhas histórias da infância, sem traumas por esse lado, viu?

 
At 5/10/08 8:04 PM, Blogger marianicebarth said...

Acho que vou parar de contar histórias verdadeiras e passar para a imaginação. Estou escrevendo sobre uma tartaruguinha linda chamada Cecília, que só existe na minha cabeça.
Outra são as Aventuras de Rebecca, já no 13º capítulo, em que a personagem tem sete anos e... (o resto ainda é segredo). É uma história para crianças dessa idade.
Hoje comecei outra: "Memórias de Camille, Uma Boneca Francesa".
Como vêem escrevo várias ao mesmo tempo. Um dia pego uma e continuo. Depois pego outra... E depois começo outra... Eu sou assim mesmo...

 
At 6/10/08 3:19 PM, Anonymous Anônimo said...

Que maravilha você poder escrever várias histórias ao mesmo tempo. Isso se chama dom. Sabe, Nice, o que escreve passa tanta emoção que pode nos dar a impressão de algo que foi diferente. Quando você conta algumas coisas sobre a sua reação aos "ensinamentos" que hoje são tão deixados de lado parece que se entristeceu bastante. É claro que sei o quanto a vovó a amava e vice versa! Mamãe, por exemplo ao contá-los, passa como uma pessoa comum e vc. como escritora. Deve estar aí a diferença.

Não acho que deva parar de escrever as suas lembranças. Elas são lindas, com castigo e tudo!
E VIVA O TEMPO EM QUE ELES EXISTIAM!

 
At 6/10/08 5:42 PM, Blogger Polemikos said...

Nice, você não estava falando sério quando você disse que pararia de "contar histórias verdadeiras"?

Veja "Diário Secreto" em meu blog!!

 
At 7/10/08 7:13 PM, Blogger marianicebarth said...

Realmente eu tenho muitas lembranças guardadas e gosto de contá-las, mas às vezes fico pensando que talvez encha a paciência dos outros, "tipo assim"...

 
At 7/10/08 9:49 PM, Anonymous Anônimo said...

Que venham as histórias verdadeiras e a s histórias de ficção. Estou curioso para conhecer a tartaruguinha Cecília (alguma coisa a ver com a "primacaçula"?) Vindo da Nice, tudoserá sucesso. Timtim

 
At 7/10/08 10:29 PM, Anonymous Anônimo said...

Jamais pense que suas histórias encherão a paciência de alguém; pelo contrário, são bastante verdadeiras e interessantes, sem levar em conta a memória fotográfica que você possue.

 
At 8/10/08 1:48 AM, Blogger marianicebarth said...

Minha queridíssima Primacaçula, estou longe de possuir memória fotográfica. Só me lembro nitidamente das coisas ou muito boas ou nem tanto, mas que me marcaram.

 

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