segunda-feira, setembro 29, 2008

O Pinhão e o Giz


O Pinhão

Eu teria uns três anos quando aconteceu.
Morávamos numa casa antiga, de pé direito muito alto, na rua principal da cidadezinha.
Em frente, na outra calçada, ficava a quitanda da D. Chiquinha, uma senhora baixinha e redonda, de voz estridente, cabelos lisos muito pretos e faces muito vermelhas.
A quitanda era um salão sem janelas, um tanto sombrio, com duas meias-portas verdes, de madeira maciça. Mamãe comprava lá tudo que precisava, marcando "na caderneta" a ser paga no final do mês; e eu sempre a acompanhava, mas não era para ver frutas, verduras, nem os sacos abertos, cheios de cereais e produtos da época que ela deixava às portas, mas sim pelos bichinhos.
D. Chiquinha morava nos fundos, mas, entre o salão da quitanda e sua casa, havia um quintal onde ela criava cabras, coelhos, patos e galinhas. E eu adorava ver e carregar os cabritinhos recém nascidos e sentir os chifrinhos apontando sob a pelagem um tantinho áspera deles. Também amava os patinhos e os pintinhos amarelos e super macios e os coelhinhos. Enquanto mamãe fazia as compras eu já ia me embarafustando pelo quintal, entre os animaizinhos.
Não havia quase carros na cidade. Apenas um lento caminhão, muito de vez em quando e a velha e única "jardineira" Circular. Então não havia perigo em atravessar a rua sozinha; afinal, eu já tinha três anos!
Numa dessas vezes, mamãe me deixou ficar mais um pouquinho brincando com os bichinhos e foi para casa. Depois de um tempo, lembrei-me da ordem "Não se esqueça da hora!" e fui saindo. Mas, em frente à porta, estava um grande saco aberto, cheio de pinhões. Minha boca se encheu de água. Mergulhei a mão por entre eles, deliciada. Escolhi o maior e o levei para casa, como um tesouro.
Mal chegando, levantando o pinhão acima da cabeça, animadíssima e cheia de confiança, pedi: "Cozinha prá mim, mamãe?"
— De onde veio isso?
— Do saco lá da quitanda.
— D. Chiquinha lhe deu? perguntou sorrindo.
— Não, eu peguei!
Imediatamente ela se endireitou e, terrificada, vi sua expressão mudar, seus olhos se apertarem e o "triângulo da catástrofe" se formar entre suas sobrancelhas...
— Você roubou!
Eu nem sabia o significado dessa palavra, mas imaginei que deveria ser uma coisa horrível, pelo tom de sua voz. Meus olhos se arregalaram e fiquei paralisada. O quê teria eu aprontado de novo?
— Que vergonha! — disse ela. Suas faces enrugadas estavam ficando coradas e eu, mortificada... — Pois agora você vai consertar isso! Vai voltar lá e dizer à D. Chiquinha: “Mamãe mandou devolver este pinhão que eu ROUBEI! E por favor me desculpe”.
Nesta altura as lágrimas já escorriam, não pelo que eu tinha feito, pois nem estava entendendo onde estava o mal, mas simplesmente por tê-la desagradado tanto. Também não encontrava coragem para perguntar. Simplesmente fui até a quitanda e repeti as palavras ordenadas. D. Chiquinha ficou de boca aberta, mas pegou o pinhão sem dizer nada.
Voltando para casa, mamãe perguntou: — Você disse tudo exatamente como eu mandei? — Acenei com a cabeça. — Pediu desculpas? — Acenei de novo.
Então ela se sentou e me pegou pelos ombros: — Você entendeu o que fez? — Acenei negativamente. — Você roubou! Sabe o que é isso? — Fiz que não novamente. — Isso é a coisa mais feia do mundo! Tão feia quanto mentir! Roubar é tirar alguma coisa de outra pessoa! Está entendendo? Minha mão foi à boca, mas ainda tinha uma dúvida:
— Mas... tinha tantos... Só peguei um...
— E esse um era seu?
— ... nnnnão...
— Então?...
— Ahnnn... era da D. Chiquinha!?...
— Isso mesmo! Entendeu agora? Não interessa quantos pinhões tenha lá, são todos dela!
— Mas a senhora traz tanta coisa de lá...
— Eu compro! Tudo custa dinheiro e é tudo pago no fim do mês!
— Ah... mas... e se ela me der?
— Você não deve aceitar, muito menos pedir. Você não é mendiga!
Eu sabia o que eram mendigos e a mamãe sempre os ajudava e parecia que gostava muito deles. Então não entendi como podiam estar errados. Ela explicou, mas ainda era muito para os meus três anos.
— A Maria é mendiga? A senhora sempre dá coisas pra ela.
— Não, a Maria morou aqui, ajudei a criá-la, é como filha. Ela tem muitos filhos e é muito pobre, mas não anda pelas ruas pedindo a qualquer um. Vem aqui porque sabe que pode contar comigo. Mesmo assim, ela fica muito, muito envergonhada ao ter de pedir, para não ver seus filhos morrerem de fome.
A lição calou fundo e até hoje me lembro nitidamente.
Essa foi uma das poucas vezes em que mamãe ficou brava comigo. O tempo todo os olhos dela eram meigos e cada vez que me olhava eu sentia todo o orgulho e o amor que ela me dedicava.
Mas, talvez pela pouca idade, parece que não entendi direito a lição, pois no ano seguinte parece que já havia esquecido tudo.

Foi quando aconteceu o caso do giz...

6 Comments:

At 29/9/08 9:58 PM, Anonymous Anônimo said...

Deixa ver se eu adivinho: "roubou" um pedaço de giz, da escola, ao final da aula. Sua narrativa dos pinhões mantém o mesmo encantador estilo - prende do começo ao fim... e ainda deixa o gancho falando do giz. Estou muito curioso. Como nossos pais sabiam educar! Gostaria eu de receber um depoimento de meu filho, contando como foi que ele aprendeu a respeitar o alheio. Parabéns também pela foto. Timtim

 
At 30/9/08 12:03 AM, Blogger marianicebarth said...

A foto é da Internet, do velho Google, que sabe tudo...
Um único pinhão, enorme, gordo, firme e lindo, que encheu minha boca de água e minha mente infantil de desejo. Apenas um, que na minha cabeça já estava cozido, quente e delicioso. Serviu para que, depois do giz, eu nunca mais fizesse de novo, mas só depois do giz...
Até hoje adoro pinhões.

 
At 30/9/08 9:49 AM, Blogger Polemikos said...

Que bom tê-la de volta!!!

Você é uma maravilhosa escritora, dá vida a tudo com uma facilidade e uma fluidez incríveis.

Invejo esta tua fantástica memória; dos 3 anos, não lembro absolutamente nada ... a não ser algumas coisas que minha mãe possa ter me contado mais tarde!!!

Precisamos de tua mãe, por aqui, hoje, para franzir as sobrancelhas para os nossos políticos ... difícil acreditar que eles possam melhorar, o mal já está feito pelo visto. É bem possível que façam jus à filiação que muitos lhes atribuem {risos} !!!

 
At 30/9/08 3:36 PM, Anonymous Anônimo said...

Que alegria! E você voltou não mais "vazia" mas repleta de informações que guarda na sua incrível memória. Que bom que esta era, desculpe, É, a minha vovózinha que pelo jeito ensinou assim todos os filhos. Mamãe se lembra não do pinhão mas do pedaço de bacalhau que "roubou" do armazém. A única diferença é que ela era já um pouco mais velha!
Como é "delicioso" ler o que você escreve!
Nós "te saudamos" neste retorno.

 
At 1/10/08 12:10 PM, Blogger marianicebarth said...

Este texto já estava escrito há alguns anos e como eu estava "vazia" resolvi postá-lo. Mas o do giz escrevi agora. Que bom que vocês gostaram!
Vocês não acham tedioso que só escrevo coisas pessoais?
Percebi que é mais fácil escrever coisas de minha própria memória e exporiência; quando escrevi sobre o Julico do machado de passeio (alguém se lembra?) a lembrança era do Nelson e parece que não ficou tão fluído...

 
At 1/10/08 2:24 PM, Anonymous Anônimo said...

Não importa que as lembranças são suas. Talvez exatamente porisso, a leitura é tão agradável e verdadeira.

 

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