sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Serenô


Às vezes, não sei de onde nem por quê, me assalta uma gostosa nostalgia, daquelas que fazem a gente sorrir feliz e iluminar o dia. A cabeça pende um pouco para o lado, o olhar se suaviza e se fixa no vazio, as mãos se unem frouxas no colo e o espírito volta a um tempo mágico em que eu era uma criança de dois anos, deitada na rede no colo da Santa, que cantava para eu dormir, a música que mais me encantava:

Serenô

Serenô, eu caio, eu caio,
Serenô deixa cair
Serenô da madrugada
Não deixou meu bem dormir

Minha vida, ai ai ai, é um barquinho, ai ai ai,
Navegando sem leme e sem luz
Quem me dera, ai ai ai, que eu tivesse, ai ai ai,
O farol dos teus olhos azuis...

Serenô, eu caio, eu caio,
Serenô deixa cair
Serenô da madrugada
Não deixou meu bem dormir

Vivo triste, ai ai ai, soluçando, ai ai ai,
Recordando o amor que perdi
O sereno, ai ai ai, é o pranto, ai ai ai,
Dos meus olhos que choram por ti...

Eu ficava imaginando um barquinho pequenino navegando à noite em águas tranquilas e mornas e no céu negro, uns olhos enormes, lindos e muito azuis, soltos no céu, sem rosto, só os olhos, sendo faróis para o barquinho. E gostava muito, tanto que me esquecia de dormir. A coitadinha da Santa, que era uma jovem de vinte e dois anos, tinha esse encargo para poder sair com as amigas, era uma condição imposta por mamãe. Então ela cantava e sua voz era muito bonita. Cantava várias músicas, mas essa era a que eu mais gostava, por causa do barquinho e dos olhos azuis.

O canto lindo me embalava e eu acabava fechando os olhos e relaxando. A Santa então, ralentando a música e já quase sussurrando, ia se levantando da rede, louca para sair. E eu abria os olhos sonolentos e chamava: Santa!... Mamãe levantava a cabeça de seu crochê.

E a Santinha suspirava e voltava para a rede com um exasperado "Aaai!... Não dormiu... ainda?!... Menina cabulosa!..." e eu pedia: "O barquinho"... E o canto recomeçava, cheio de paciência:

"Serenô"...

11 Comments:

At 13/2/09 10:03 PM, Anonymous Anônimo said...

Continuo admirando a nitidez de suas lembranças. Admirando a precisão da descrição.Eu senti a beleza dos olhos azuis, eu via a Santa se afastando, pé após pé, na tentativa de sair sem acordar a menininha. Gostei tbm de recordar esse SERENÔ.
Continue nos presenteando com suas recordações.

 
At 13/2/09 11:53 PM, Anonymous Anônimo said...

Também fui criada embalada pelas canções da minha mamãe Esther!
Sua recordação me fez lembrar de Itapê naquelas férias em que o papai nos deixava lá na casa da vovó.

" AH! Que saudade que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida..."
.............................
Época do descompromisso, da irresponsabilidade, da consciência ainda adormecida para algo tão sério que é o VIVER!

 
At 14/2/09 1:15 AM, Blogger marianicebarth said...

Ninguém perguntou, mas vou contar:
Para fazer essa ilustração, primeiro
Fase 1) fiz um barquinho de papel; Fase 2) procurei esse par de olhos maravilhosos numa capa de revista de 1996, da Cristiana Reali, brasileira, que foi o "Rosto da Lancome" desde 1993 (acervo da Alessandra, minha filha, fotógrafa).
Fase 3) Escaneei o rosto da Cristiana.
Fase 4) Abri com Fotoshop, selecionei e cortei a área dos olhos, ajustei para mais azul e abri no desktop.
Fase 5) Posicionei horizontalmente um protetor de parabrisas prateado em frente ao computador, fixei com fita adesiva, coloquei em cima o barquinho e fotografei.
Fase 6) Passei a foto para o computador, abri de novo no Photoshop e escureci toda a área em volta dos olhos para dar a impressão de noite num lago.
E pronto!

Gostei do resultado, porque o protetor prateado está parecendo mesmo água.

E tenho certeza de que o Timtim vai gostar de saber como foi feito.

Make-up: (Ai que chic!)
Houve "problemas de produção", é verdade: por falta de assistente, a fita adesiva se descolava, as luminárias que posicionavam o protetor de parabrisas caíam a todo momento, estragando o cenário, enfim...
Acabei tendo de segurar a parafernália toda com a mão e fotografar com a outra... Mas valeu!

 
At 14/2/09 12:34 PM, Blogger Polemikos said...

Primeiro, meus parabéns pela sua montagem fotográfica. Trabalho de profissional. Mais um dote para somar à sua lista ....

Segundo, me conta seu segredo : como você consegue se lembrar de sua infancia com detalhes tão vívidos!! Para mim, a minha primeira infância é um vazio total. Nada, nadinha mesmo!

Turini

 
At 14/2/09 1:20 PM, Blogger marianicebarth said...

Turini, você conhece minha história, não fiz segredo disso. Se você tem uma infância traumática, o cerebrozinho fica sempre em estado de alerta e as gravações se alternam em "boas" e "más".
Lembro-me perfeitamente, como se fosse neste instante do verdadeiro pânico que sentia de perder Mamãezinha, a incrívelmente amorosa tia-avó que me criou desde os dezoito dias e que, tendo 53 anos quando eu nasci, parecia aos meus olhos muito, muito velhinha. Lembro-me dos pesadelos em que ela minguava e desaparecia, ou que estava sem uma perna, coisas horríveis que me assaltavam e que me perseguiam fazendo-me chorar nas madrugadas. Aprendi a dominar esses medos e com o tempo, aprendi a me encaminhar à cama dela e com a mão, sentir sua respiração, o que me acalmava e me assegurava que ela estava viva. E eu voltava ao meu berço e conseguia dormir tranquila, até o pesadelo seguinte.
Estou com vontade de continuar escrevendo a minha história, com todas as pessoas que participaram dela (talvez por influência dos Cem Anos de Solidão, que estou relendo pela terceira vez).
O que você acha? Tenho certeza de que não aprova, como já disse uma vez: "Eu jamais escreveria tais coisas", ou algo semelhante. (risos)

 
At 14/2/09 3:47 PM, Anonymous Anônimo said...

Nice, o que que é isso!(bis) Primeira admiração: a montagem -isso se chama make up? - nunca pensei que fosse obra sua. Achei que tinha tirado direto do Google. Segundo admiração: como estamos nos entendendo bem nos sentimentos e sensibilidades! Você adivinhou: gostei muito de vc se dar ao trabalho de descrever, fase por fase, a bela montagem do barquinho com os olhos azuis. Mesmo não entendendo nada de toda essa tecnologia: escanear, photoshop e não sei mais o que, admiro sua capacidade e criatividade. Até mesmo os apertos que passou: fita adesiva descolando, etc.
Emocionei-me ao ler seu comentário, falando de como se formou esta Nice sensível, preocupada com a Mãezinha. VOLTE, SIM, A ESCREVER sobre o passado.

 
At 14/2/09 11:40 PM, Anonymous Anônimo said...

COM CERTEZA!
CONTINUE COM A SUA HISTÓRIA!
O QUE ESCREVE NOS ENCANTA, ESPERANDO SEMPRE MAIS!

QUE INTERESSANTE ESTA MONTAGEM. EU, QUE SÓ SEI MEXER COM O POWER POINT ACHEI O MÁXIMO!

 
At 15/2/09 7:07 AM, Blogger Polemikos said...

Nice, sou bastante loquaz quando diz respeito a meus pensamentos, meus pontos-de-vista e minhas percepções sobre as coisas. Mas fico (bastante) recatado quanto aos meus sentimentos e não me é fácil me abrir ...

Mas nunca disse que você não devia fazê-lo. "Eu janais escreveria " era uma observação sobre meu jeito de ser, nunca um conselho para os outros ....

Turini

 
At 15/2/09 7:15 AM, Blogger Polemikos said...

P.S. Observo que algumas pessoas, não do nosso grupo, se ofendem - literamente - inclusive quando professo opiniões sobre assuntos "populares" como futebol, novelas, política, etc ...

com estas pessoas, apenas fico no papo furado .... ou seja, me fecho para estas pesssoas e as mantenho "at arm length" para usar uma expressão inglesa muito oportuna, cujo sentido é de manter algo "fora do alcance".
.

 
At 15/2/09 1:33 PM, Blogger marianicebarth said...

Mas aqui você é muito querido e muito bem recebido e extremamente bem considerado. Pode expressar sua opiniões sobre o que lhe agradar sem se preocupar se alguém irá concordar ou não, porque discordar faz parte das amizades que valem a pena.
E também não se "ofenda" com minhas "provocações no bom sentido", como diz nosso querido Timtim...
Que pena o Zeca estar ausente, pois ele é o que mais discorda e isso também faz falta.

 
At 16/2/09 1:07 PM, Blogger marianicebarth said...

Timtim, desculpe pela informação errada. Fui brincar com vocês e me confundi no nome da produção: não é make up, mas sim making of. Só vi isso agora.
Está acontecendo comigo isso de trocar os nomes das coisas.
Chama-se IDADE...

 

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