quinta-feira, maio 24, 2007

LENITA



Só mais um pouco de Xadrez.


Lenita, minha parceira e companheira estudante desse jogo, pessoa entusiasta por tudo, super-sociável, cheia de vida e paixão pela Equipe 51.
Adorava tudo na Olimpíada e queria jogar tudo. E dava o sangue, mas sempre com bom humor e alegria. Adorava tudo e parece que tinha de provar a si mesma que era capaz. - Sou uma vencedora - dizia.
No futebol feminino, a baixinha corria e a bola era só dela, com os grandes olhos verdes eternamente delineados com lápis preto e rímel, inocentes e abertos para o mundo como os de uma criança. No basquete, contribuía com suas cestas e, rindo sempre, tornava o jogo competitivo numa brincadeira, como deveria ser. Comprou luvas especiais para jogar peteca, pois suas mãos ficavam muito machucadas. No biribol era a maior pândega, sorriso encantado e felicidade estampada no rosto. No vôlei seu maior prazer era ser chamada do banco de reserva. Se rosto, já iluminado normalmente, resplandecia. Na mini-maratona (míseros 5 km), mesmo que não chegasse entre os primeiros, na partida estava sempre na primeira fila.
Felicidade definia Lenita, apesar da bronquite asmática severa. Num jogo de futebol, ela foi disputar uma bola e estirou um ligamento na parte interior da coxa, tendo de engessar desde o quadril. Foi jogar xadrez assim mesmo, de perna dura e acabou caindo com cadeira e tudo, assustando a todos. Felizmente, não quebrou o gesso! Mas depois, quando perguntavam porque estava engessada, brincava que foi no xadrez: "Esse esporte é violento, quê cê tá pensando!" e ria deliciada...
Era solteira e sócia dos irmãos na fábrica, que fornece um certo produto para o Metrô e de que ela também muito se orgulhava. Morava sozinha no apartamento de seus pais, que ficara em herança para ela. Tinha um carro preto, um Escort e voava baixo nele. Não diminuía a marcha nas esquinas e costurava no trânsito. Uma vez nos deu carona para casa e o Nelson, brincando, comentou:
- Puxa! Lenita!... que emoção! No seu carro a gente entra passageiro e sai sobrevivente. Ela ria deliciada...
- Ah, Nelson, eu sou assim mesmo. Não tenho tempo a perder... O tempo é curto, tenho de aproveitar a vida! Eu corro o tempo todo! Mas pode confiar em mim como motorista, porque dirijo muito bem!
Nunca vi a Lenita menos animada, exceto no dia em que estávamos jogando por prazer, sozinhas na Sala de Xadrez, quando ela me contou que o médico a proibira de jogar futebol. Foi a primeira vez que a vi suspirar. Disse que o médico pedira uma radiografia pulmonar e que detectara um aumento considerável do coração.
- Ele está preocupado - dizia ela - com o tamanho do meu coração, mas eu estou muito triste de não poder jogar futebol. Ele disse que não posso correr, nem disputar uma bola. Que coisa mais boba! Mas ele me fez prometer parar com o futebol. Eu perguntei: até quando? e ele: - Não sei, mais um tempo. Eu libero você quando der. Confie em mim. - E contra a vontade, prometi, mas não vejo a hora de voltar. Vai ser duro ficar olhando todo mundo lá jogando e eu de fora, parada... Isso é que meu coração não agüenta!
Num sábado, abril de 1997, Lenita e eu tínhamos combinado jogar o nosso xadrezinho, mas ela não apareceu. No domingo, chegou tarde, um fato inédito, um pouco abatida, embora seus grandes olhos verdes estivessem normalmente pintados com os indefectíveis lápis preto e rímel. Justificou sua falta na véspera, contando que não estava passando muito bem e que um dos irmãos a levara direto da fábrica ao Pronto Socorro na sexta, quase sem poder respirar, em crise de asma.
- Fiquei assustada - disse ela, arquejando um pouco - Pensei que tinha chegado minha hora... Deus me livre! Meus dedos já estavam roxos! Mas agora estou melhor.
Olhando para ela, achei que estava um pouco corada e alterada e disse isso, ao que respondeu: - - Vim correndo! Estou bem. Não se preocupe! Comigo ninguém pode!
Jogamos normalmente o dia todo, os outros parceiros foram chegando e tudo ficou normal. Mas não gostei da respiração curta, nem do chiado. Porém na segunda ela estava um pouco melhor.
Na terça não apareceu.
Na quarta, ao meio dia, recebi um telefonema de um dos irmãos. Ela não fora trabalhar, coisa impossível nela. Ligaram para seu apartamento e não atendeu. Foram até lá e a encontraram morta. Disseram que seu coração literalmente explodiu. Ela estava na cozinha, onde ficava sua bombinha, presa na parede . Caíra a um metro, com o braço estendido.

Hoje, ao contar isto aqui no blog, não pude deixar de interromper algumas vezes para chorar um pouco. A morte para mim é a coisa mais normal que existe, mas a saudade e a falta das pessoas queridas às vezes pega a gente de jeito.

Perdi muito da vontade de jogar xadrez.

4 Comments:

At 3/6/07 7:36 PM, Anonymous Anônimo said...

Pronto! Só faltava esta! Eu chorando pela morte da Lenita, que não conheci. Ou será que conheci? Sua crônica, Nice, foi tão perfeita que antes do final eu já estava meio apaixonado pela Lenita. Que mulher!
Agora, não vai me dizer que vc também joga, ou jogava futebol! LINDA SUA HOMENAGEM.

 
At 4/6/07 2:08 AM, Blogger marianicebarth said...

A resposta é tão comprida, que resolvi fazer um texto novo, do qual não gostei, acho que não ficou bom. Mas publiquei assim mesmo.

 
At 11/6/07 8:33 PM, Anonymous Anônimo said...

Pelo jeito sua amiga sabia que seu tempo era curto e precisava fazer tantas coisas! Pode ter certeza que o time feminino de futebol "lá de cima", ganhou mais uma jogadora!
Qto a vc. perder a vontade de jogar xadrez repito o que disse à mamãe por não gostar mais de fazer aniversário: - "Vovó não está feliz com isso"! Agora digo a vc: -"Lenita quer que continue a jogar"!
Que Deus a tenha!

 
At 12/6/07 12:23 PM, Blogger marianicebarth said...

Para isso preciso de parceiros, pois como já expliquei, o Nelson não quer jogar comigo (Não brinco mais! disse ele...). Detesto jogar contra o computador, falta aquela emoção do coração batendo a mil, falta a emoção do parceiro, os sustos a um lance imprevisto, enfim, tudo de humano no jogo. Quando jogamos com uma pessoa, há um troca de coração para coração, é lutar um bom combate, aprender a ganhar e a perder. É o que eu dizia à Lenita e ela respondia: "Jamais vou querer aprender a perder! Sou uma Ganhadora!"

 

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