domingo, fevereiro 15, 2009

Mais de Cem Anos de Memórias

Não há como voltar à infância sem começar pela história de Juventina e de João. Que lástima não ter eu perguntado mais detalhes sobre a vida deles. Dele, sei quase nada e dela, sei tão pouco.
Mamãe nos contava, durante os serões na cozinha, à beira do fogão de lenha em noites frias de Julho, retalhos de sua vida, entre o bule de café quente e a panela de pipoca. Inúmeras vezes faltava energia elétrica na cidade. Era quando nos reuníamos em frente ao fogão, à luz das chamas para ouvir histórias, que eram contadas e recontadas, sempre as mesmas, principalmente aquelas de fantasmas e aparições: Santa, Idalina, a empregada, Julinho e Zeca, dois irmãos de doze e onze anos que estavam hospedados em casa para estudar, e eu. “Mamãe, conta aquela das brasas...”
Mamãe não sabia nem o ano nem o dia de seu nascimento. Não sabia se havia ou não sido registrada. Calculava que tivesse nascido por volta de 1890 ou 1892. Nunca a ouvi falar de seus pais e apenas posso imaginar se mal os teria conhecido, ou se sequer se lembrava. Não sei se morreram ou se simplesmente entregaram as filhas. Imagino que eram pobres demais. Mas posso estar enganada sobre isso.
Juventina e sua irmã Maria foram criadas pelos padrinhos, ricos comerciantes de São Miguel Arcanjo, cidade minúscula a uns 50 km ao sul de Itapetininga. Coisa comum no século IX e começo do século XX, crianças crescerem nas casas dos outros. Mamãe dizia que a casa e a loja deles ocupavam todo o quarteirão. As filhas mocinhas estudavam francês, canto, tocavam piano e bordavam. Eram perfumadas e vestiam as sedas e rendas mais finas e seus vestidos e anáguas eram os mais bonitos da cidade e seus cabelos negros, compridos e brilhantes nunca haviam sido cortados. Ela adorava ouvir o frufru das sedas e sentir o perfume quando elas passavam.
Mas Juventina e Maria vestiam algodão grosseiro, como as criadas. Quando criança, sonhava poder ser como as filhas da casa, um dia.
Sua madrinha era despótica e irascível e tratava mamãe e a irmã como escravas, com muitas obrigações e nenhum direito.
A história que mais me impressionava era a das brasas.
Quando ficou muito doente, a madrinha obrigava Juventina, que na época tinha apenas cinco anos, a dormir na soleira da porta de seu quarto, para que cuidasse dela e corresse para trocar as brasas do braseiro sob sua cama, várias vezes durante a noite, antes que esfriassem totalmente. Numa dessas noites geladas, alguma das criadas havia tirado do lugar a pá de pegar brasas. A menina voltou ao quarto e perguntou como poderia pegar as brasas sem a pá. E a mulher gritou impaciente: Pegue com as mãos!
E foi o que ela fez. Pegou um punhado de brasas e correu de volta para o quarto, sem se atrever a se queixar da dor horrível. As brasas grudaram em suas mãozinhas e quando ela tentava arrancá-las a pele saia junto. E a madrinha ria, divertida. O braseiro foi colocado no lugar e a criança voltou para seu canto na soleira da porta, as palmas das mãos em fogo, mordendo os lábios de dor, contendo os soluços, as lágrimas escorrendo.
Mamãe contava isso sem rancor, apenas relatava o fato. Mas nós ficávamos horrorizadas. Ouvi essa história muitas e muitas vezes e perguntava sempre por que ela não tinha ido para longe de tal madrinha e ela respondia que não tinha para onde ir, que a madrinha lhe fazia um enorme favor de criá-la e vesti-la e que naquele tempo não havia a menor possibilidade de uma criança, principalmente do sexo feminino, desobedecer a um adulto.
“Criança não fala, Criança não interrompe conversa de adulto, Criança não tem querer, Criança come tudo que está no prato, Criança obedece”, Criança tem de ser comportada”... “Meninos não choram, Meninas não brincam com meninos, Meninos não brincam com bonecas, Meninas não pulam, não correm, não transpiram, não espirram, não gritam, não falam alto, não riem alto, não sobem em árvores, não saem à rua desacompanhadas”, não isto e não aquilo... Era grande a lista de nãos.
Enfim, meninas tinham de ser modelos ideais e meninos só não podiam chorar e brincar com bonecas para não se tornarem “mariquinhas”...
Depois que a madrinha morreu, a vida melhorou para todos na casa, pois o padrinho era um homem bom. Se ele se casou novamente, não sei. As duas irmãs foram para a escola pública e tiveram educação básica, até a sexta série, aprendendo além das matérias comuns ainda hoje, o francês, o grego e o latim. Nas escolas daquele tempo a palmatória era a lei. Mas mamãe e a irmã jamais precisaram dela.
Mamãe se tornou muito boa na costura e no bordado e era encarregada da roupa da casa do padrinho. Sua irmã, Maria, casou-se aos treze anos com um viúvo muito mais velho, que era quase um avô para ela. Ainda uma criança, brincava no quintal com as bonecas das filhas do marido.
Mamãe cresceu e se tornou uma moça muito bonita. No decorrer de seus dezoito anos, graças ao convívio com as jovens donas da casa, ganhara um brilho de doce refinamento que recobria um estofo de coragem e fortaleza.
Entretanto, chegara à cidade um jovem professor chamado Fernando Rios. Era um moço bem apessoado e ela percebia o interesse dele, no chapéu tirado à sua passagem, na curvatura respeitosa e no olhar sério e discreto que a acompanhava.

7 Comments:

At 15/2/09 7:13 PM, Anonymous Anônimo said...

Help!Help!, me situa melhor, Nice, para eu não perder detalhes desta narrativa tão rica de emoções, bondades, maldades, paixões. Relembra para mim quem é Juventina, quem é Maria, quem é a mamãe, que conta a história das brasas. Pena que o nosso grupo esteja tão reduzido, agradeço que vc se dê ao trabalho de produzir narrativa tão bem elaborada.

 
At 15/2/09 8:57 PM, Blogger marianicebarth said...

Árvore para sua lembrança:

Juventina era casada com João, ambos avós do Shiost e da M. Cecília.

Maria era irmã da Juventina e foram criadas pela madrinha má.

João e Juventina eram meus tio-avós, pois João era irmão de meu avô Antonio, pai de Anna, minha mãe.

Vai entrar muita gente na história. Por isso (mal) comparo com Cem Anos de Solidão.

 
At 16/2/09 3:12 PM, Anonymous Anônimo said...

MEU DEUS! QUANDO SAIRÁ ESSE LIVRO PARA DEVORÁ-LO MUITAS VEZES?

Acho que isso é um elogio: sua descrição, o seu texto, me fez amar ainda mais a vovó! Mexeu com o meu coração, com a minha alma!

Detalhe: acho que é pelas histórias contadas, que me simpatizo com fantasmas, embora tenha medo de alguns, "não muito íntimos"... Rrss rss!

 
At 16/2/09 5:52 PM, Anonymous Anônimo said...

Que bênção, Nice, a primacaçula poder dizer que seus escritos a fizeram amar ainda mais a vóvó. Continue, continue, eu tbm quero ver esse livro pronto. Que venham os Cem Anos de ... (será que foram de solidão?).
Obrigado pelo refresco nas lembranças. A fotinha está muito bonitinha.

 
At 17/2/09 6:12 AM, Blogger Polemikos said...

Nice : minha vez de lhe prestar os meus respeitos : você escreeve muito bem, muito melhor do que muita gente ... os seus personagens conservam vida e emoção.

Continue ... mas não deixe de pintar!!

Turini

 
At 17/2/09 10:21 AM, Blogger marianicebarth said...

Obrigada a todos, Turini, Priminha e Timtim. É tão bom escrever quando alguém lê! E quando gostam, então, é muito gratificante.
Timtim, não se preocupe de nosso grupo ser pequeno, pois escrevo mesmo é para vocês. Mas sei que outras pessoas leem, porque me telefonam comentando. Outras não sabem deixar comentários. Não tem importância. Vocês são tudo de bom.

 
At 18/2/09 12:02 PM, Blogger caos e ordem said...

Há uma unanimidade: escreve, escreve, queremos livro, faça a conta somando os familiares, amigos e adjacentes só aí já terá um número grande de compradores do livro.
Lembrei-me das histórias que Cora Coralina conta em seus livros.
O estilo e jeito de narrar é muito leve e agradável, o gosto é de quero mais. Aliás só estou recordando o que já sabia sobre sua capacidade, estou mais uma vez saboreando.

Zecão

 

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