segunda-feira, junho 07, 2010

Coragem é Enfrentar o Próprio Medo

O Flávio José era o primo mais velho, quatro anos completos mais velho do que eu, dois e nove meses mais velho que a Maria Christina.

Os dois vieram antes na minha vida do que você e o Deto. Ele era sarcástico, tanto quanto a Maria Christina, mas foi exatamente isso que me levou a querer melhorar minha maneira interiorana de falar e a aprender um português mais correto e cristalino. Era a maneira mais eficaz de evitar de cair nas malhas gozadoras dos dois... 
Foi o Flávio José quem  me instigou a ter vontade de aprender, a um desejo imperioso de ler, demonstrando pelo próprio exemplo a importância de uma base de estudos. E devo à Maria Christina, a quem nada passava despercebido e para quem nenhuma pessoa estaria livre de ser corrigida em público, a autocrítica e a tentativa de melhorar o quanto pudesse. 
Ser motivo de caçoada pelas pessoas que eu mais admirava? Nunca mais! 
A nenhuma das partes a cena da briga deixou nenhum qualquer resquício de rancor. 
Mas houve um fator interessante: minha reação. Sem querer, provei a mim mesma e a eles que era capaz de uma resposta forte e decisiva, embora tivesse menos idade e tipo físico mais frágil. 
Dois anos mais tarde, na 4ª série do curso fundamental, uma menina  chamada Odete, a mais infernalmente forte da classe, resolveu me provocar para uma "briga lá fora". Até hoje nem imagino o motivo. Mas o desafio era direto e indiscutível. e veio por escrito.  O bilhete fora intencionalmente passado de mão em mão até chegar à minha carteira. 
Quando o li, senti que o sangue me fugia do rosto e que em seguida ficava em fogo. Passei os olhos à minha volta e vi a grande maioria da classe cochichando entre si e me olhando com curiosidade. "O que ela vai responder?" - diziam os olhares - " Não vai aceitar" - "Ela é magricela e não vai querer apanhar..." "Ela não tem chance..." . Minhas duas amigas me faziam sinais para que não aceitasse o massacre.
Minhas têmporas batiam a ponto de ensurdecer. Vou levar uma surra e tanto! - pensei - Mas  não posso correr, não vou correr, vou enfrentar! 
Eu sabia que não haveria escolha, que nunca poderia conviver com a covardia. E respondi que aceitava. A classe adorou, é claro. Uma briga! Ou melhor, uma carnificina... Desde o início dos tempos que o povo adora uma matança... e era assim que eu me sentia - indo para o cadafalso, para a arena dos leões... Eu já começava a desenvolver um senso dramático...
Nos meus nove anos eu jamais tinha sido desafiada para uma briga. Não com o meu corpinho frágil. Como Mamãe iria me matar, se soubesse! Eu nem poderia imaginar o castigo, se ela ficasse sabendo... E decidi que não contaria...
Bateu o sinal (vocês se lembram de quando o sinal era um pequeno sino que o inspetor de alunos tocava adoidado?) e saímos para fora. Levantei a cabeça , fechei a cara e marchei devagar e dignamente, pelo menos era a minha intenção. A Odete já me esperava, bufando feito um tourinho bravo. Jogara a mala no chão e me esperava de mãos nuas, punhos fechados.
Eu levava minha mala cheia de livros e cadernos e fiz um plano em minha cabeça: "Ela pode bater quanto quiser depois, que não vou mesmo ter chance, mas quem vai dar  a  primeira sou eu! 
Quando cheguei bem perto avancei e levantando a mala, acertei-a com toda a força , que aliás não era muita... Mas foi só o que consegui. Ela fez o resto. Jogou-me no chão e pulava em cima, gritando que eu era espírita e que minha família toda era espírita! Tive muita sorte que não me quebrasse nenhum osso. De repente parou e foi embora. 
Eu estava bem machucada e toda suja, mas inteira. Sobrevivera e nem tinha sido tão ruim... Eu tinha batido primeiro e estava até orgulhosa disso...
Sangue me escorria do braço ralado e de um joelho e fiquei apavorada de medo da mamãe. Minha saia! Toda suja! Minha blusa, de um branco impecável, agora, imunda e até rasgada! Agora sim, eu estava com medo, mas esse não era covardia! Mamãe era um doce dragão que me amava e cuidava de minhas roupas... E agora? Como enfrentá-la? Fui andando para casa, mancando e tremendo, lágrimas descendo pelo rosto sujo. 
Ela me esperava e ao me ver, correu, preocupada: 
- Nice!! Coitadinha! Onde você caiu? Toda machucada! Venha, vamos limpar isso!
-Que bom, eu pensava, não foi preciso dizer nada...

6 Comments:

At 8/6/10 4:59 AM, Blogger caos e ordem said...

Já li, gostei muito, respondeu à minha pergunta.
Começo a imaginar que houve mais alguma coisa pela frente, ou bastou essa demonstração de vencer o medo.
O Turini me despertou uma grande curiosidade: as memórias sempre têm no meio alguma coisa que é mais da imaginação do que do realmente acontecido, isto é uma qualidade do escritor. Então a curiosidade é esta: qual é a dose do real e qual a da imaginação. Não quero sua resposta, a dúvida neste caso é mais prazerosa.

 
At 8/6/10 8:44 AM, Anonymous primacaçula said...

Se a menina dizia isso... "Ela é espírita, a família é espírita" , deve ser esse o motivo, ou seria, a sua beleza?

Ainda bem que os tempos são outros e não precisamos mais temer os anti- espíritas! Senão, quem sabe, eu estaria levando uma surra!

 
At 8/6/10 8:47 AM, Anonymous primacaçula said...

Interessante anotar aqui como as críticas têm um lado positivo: se soubermos aproveitá-las são elemento de transformação e melhoria.

 
At 8/6/10 8:02 PM, Anonymous timtim said...

Pergunto aos analistas de plantão: qual é a probabilidade de uma menina como esta tornar-se uma adulta corajosa, enfrentadora de desafios, personalidade forte?
Narrativa impecável; parece até uma transmissão de luta livre.
Gostei da recordação da sineta, avisando o fim da aula; até vi o bedel pelos corredores do meu Grupo Escolar.

 
At 8/6/10 11:03 PM, Blogger marianicebarth said...

Posso afirmar a vocês que esta narrativa foi contada exatamente como aconteceu. Só mais um detalhe que me lembrei só depois de publicada a postagem:
Tinha em minha classe uma aluna nova, recém-chegada de outra cidade. Era muito bonita (para a época), chamada Heloísa. Olhos azuis, cabelos louro-cinza, claríssimos, coisa rara em , imagine uma menininha de dez anos. Era muito delicada, seriazinha e tinha uma voz suave e macia. Era reservada e calada e todas as outras meninas brigavam pela amizade dela entre si.
Mas nesse dia ela resolveu vir conversar comigo na hora do recreio. Logo em seguida aconteceu o caso do bilhete da Odete. Talvez tenha sido um caso de ciúmes da outra. O que vocês acham?
E durante a briga, a "fortona" Odete gritava aquela história do espiritismo da minha família...
O que também não era verdade. Não era toda a família. Papai e Edna e Belinha eram espíritas, mamãe, ecumênica e o resto católico. Eu, nesse tempo, era "pau-mandado"... Ia à igreja católica porque mamãe mandava, mas nunca me senti muito à vontade lá. Não sentia sinceridade nos "fiéis". achava que eram todos uns "infiéis"...

 
At 9/6/10 12:07 PM, Anonymous primacaçula said...

Mamãe disse que quando tinha 7 anos resolveu jogar seu livro de orações e o terço fora. Naquele dia sonhou com um anjo que lhe pedia nunca deixar de ir à Igreja.
"Fantasia de menina com complexo de culpa"?
Quem saberá?

Engraçado as meninas disputarem a amizade da mais bonita. Talvez por serem crianças ainda. A experiência que tenho com a Cláudia, minha sobrinha e a Priscila, minha filha é o do afastamento das meninas por não quererem correr o risco de se sentirem menos bonitas.

Que importa a beleza física, não? Nessa idade elas pensam assim.

 

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