quinta-feira, março 10, 2011

Atração Irresistível III

Mamãe fazia de tudo para que eu me portasse como uma mocinha e que conservasse minhas tranças bem apertadas e sem muitos fios fora do lugar. Eu odiava tudo isso. Subir em árvores era muito mais divertido.
Nessa altura eu já estava aprendendo piano com D. Sônia Santiago há alguns anos. Eu também odiava isso. Era apenas uma hora por dia, mas como demorava a passar... Exercícios infindáveis, escalas, Czerny, Bach, Lizt, Beethoven, Mozart...
Estudava com afinco, embora não gostasse. Mas não havia outro jeito. Eu não tinha piano, tinha de ir à casa da professora todos os dias. Todos os dias!  Mas se não gostava dos exercícios, adorava as músicas. E a professora não saía de perto. Quando eu pensava que ela estava longe, aí me soltava e tocava com o coração, cheia de sentimento. E ela entrava na sala: "Muito bem! Agora gostei. Vamos ter uma apresentação..." E então eu começava a morrer um pouco, de vergonha antecipada. Não conseguia tocar em público, com toda aquela timidez. Sabia que meus dedos iriam tremer tanto que não conseguiria acertar as teclas. Eu odiava aquilo! Pânico de palco... Por quê eu tinha de me curvar aos desejos dela? Por quê não me deixava em paz? Infelizmente não me atrevia a enfrentar, nem D. Sônia, nem mamãe.
E também tinha consciência de que no dia da apresentação eu iria, como um cordeirinho, para o abate. Ano após ano, mamãe na platéia, os olhos cheios de lágrimas de orgulho, o que me comovia e me levava a cumprir minha parte o melhor possível.
Comecei a perceber que se tocasse com uma certa raiva, os dedos não tremiam tanto. E lá ia eu, ano após ano.
O curso Ginasial foi passando, nada muito diferente acontecendo, exceto que ganhei altura, fiquei maior do que todos em casa e criei coragem para cortar as tranças. Continuava muito retraída e mais tímida do que nunca. Lia muito e fui adquirindo bastante vocabulário. Aprendi um pouco de Latim e um pouco de Francês, mas o Inglês foi minha língua predileta. Parecia que estava relembrando cada palavra que deveria estar aprendendo. A Matemática era uma tragédia, aulas particulares adiantavam pouco. Em Português eu era bastante boa, graças às leituras. Não gostava de Geografia, nem de História, podem imaginar? Hoje adoro as duas coisas, tão interligadas. Penso que o problema estava nos professores, que queriam a matéria decorada e que não contavam a História direito, nem faziam palpitar a Geografia... Essas matérias são uma mina de ouro para um professor entusiasta e talentoso.

Aos doze anos as aulas de piano já eram mais suportáveis. D. Sônia abriu um Conservatório e eu já desenvolvera uma capa de invisibibilidade durante as apresentações. Fingia que não estava lá e pronto... "Não estou aqui. Não há ninguém lá. A platéia está vazia. Estou tocando só para mim..."

Aos treze terminei a oitava série e passei para o Instituto de Educação Peixoto Gomide. Fiquei deslumbrada. Amigas novas, cabeça aberta a novidades.
As aulas com D. Anna Zilpah, professora de Música, foram decisivas. Ela era uma pessoa fabulosa, diferente das outras e dos outros professores. Além disso, era excelente ensinando. Tinha um defeito no rosto ocasionado por uma osteomielite e perdera uma parte do queixo. Sua face era um pouco torta e isso à primeira vista era chocante e só por isso ela já apreendia nossa total atenção. Até que ela começasse a falar... Era o carisma em pessoa.
De repente o mundo mudava de cor, mostrado a nós por ela. Esquecíamos do defeito em sua face. Voávamos em suas palavras, flutuávamos sobre nuvens de pensamentos interessantes, de idéias nunca imaginadas. Música era, por causa dela, a matéria que eu mais gostava. Mas além da Música, D. Anna Zilpah dava shows de ensinamentos éticos e morais, de um alcance tão grande que ficávamos todas enlevadas com suas palavras.

Foi a primeira vez que percebi que existia em algum lugar uma religião ou filosofia diferente e irresistivelmente atraente para mim. Aos poucos fui me ligando a essa linha de pensamento. E iniciei minha busca. Definitivamente, a religião católica não me satisfazia, com seus dogmas e seus padres prepotentes.
Desde os catorze anos passei a utilizar a biblioteca da prefeitura, que ficava na praça principal da cidade, o Largo dos Amores. Passava horas ali, procurando e lendo incansavelmente livros e mais livros interessantes. Até que descobri as "Memórias de um Médico", de Alexandre Dumas Pai, em dezoito volumes, que devorei noite após noite. Só saía quando fechava a biblioteca.
E foi nessa coleção que conheci a Maçonaria, a Hipnose, a Mesmerização... e que fiquei sabendo que Shakespeare tinha razão..., além de aprender muito sobre a França de Luiz XV, Luiz XVI, Maria Antonieta e depois a Revolução Francesa.

10 Comments:

At 10/3/11 5:14 PM, Anonymous primacaçula said...

Que maravilha...
Adoro ler seus escritos, Nice.
Quando fala da cidade, da Igreja, da Praça, tento relembrar momentos que passei lá nas férias com a família.
Me lembro mais de quando já era maior pois pequenina, como já disse, meu mundo "era a saia da mamãe", que hoje está isolada em seu cantinho particular, já vivenciando o "lado de lá"...
Às vezes fala da vovó, do vovô, da tia Belinha e Edna. Sabe que estas duas já faleceram, mas diz que os pais estão em Itapetininga e ela, com saudade.

Como vc. gostava de ler desde cedo!
Sabia que Kardec iniciou seus estudos de magnetismo com Mesmer?

 
At 10/3/11 5:15 PM, Anonymous primacaçula said...

ONDE ANDAM NOSSOS AMIGOS???
A MAIÚSCULA É PROPOSITAL.

 
At 10/3/11 8:43 PM, Blogger marianicebarth said...

Sabia que Mesmer começou antes de Kardec.

 
At 10/3/11 8:44 PM, Blogger marianicebarth said...

Boa pergunta. Por onde andam?

 
At 10/3/11 9:52 PM, Anonymous timtim said...

Tô aqui. Vidrado, mesmerizado(magnetizado), linha por linha. Em que é que Shakespeare tinha razão?

 
At 11/3/11 3:28 PM, Blogger Polemikos said...

As coisas que a gente aprende na pre-adolescencia naçoa se esquecem nunca. Nesta idade, eu tambem liua Alexandre Dumas .... mas não os 18 volumes.Maçonaria vim a ouvir falar muito mais tarde.

 
At 11/3/11 11:03 PM, Blogger marianicebarth said...

Timtim, hoje não sou mais tão curiosa. Mas conservo uma vontade enorme de aprender, aprender tudo o que puder. Seria isso curiosidade? Pode ser...

 
At 11/3/11 11:25 PM, Blogger marianicebarth said...

Mas a primeira cena do "Memórias de um Médico", instigante e maravilhosa, já era sobre José Bálsamo, Conde de Cagliostro, máximo grau da Maçonaria.

 
At 11/3/11 11:30 PM, Blogger marianicebarth said...

Essa última resposta foi para o Turini.

 
At 12/3/11 9:22 PM, Anonymous timtim said...

Essa é a melhor das curiosidades, Nice, a vontade de saber, de conhecer mais. Estou lendo um livro interessante sobre os problemas da memória e, ali, se afirma que a mulher tem melhor memória para os fatos familiares, os fatos que envolvem pessoas. Parece que isto se confirma em você. Continue as narrativas.

 

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