quinta-feira, maio 24, 2007

Lição de vida


Esta foto não é do jogo que estou relatando. 

Um dos pontos interessantes nos meus 20 anos de xadrez foi um campeonato paulista realizado no Clube Paineiras em que participei jogando com uma jovem cega, ela com as brancas.
Ao ser sorteada, senti o chão me faltar, pois não tinha nenhuma idéia de como isso poderia ser. O juiz me explicou que o tabuleiro era especial, com peças idem.
Apreensiva e curiosa ao mesmo tempo, fiquei olhando a moça de 21 anos se aproximando, com sua bengala retrátil de alumínio, seguida de perto por outra moça que pensei ser sua acompanhante. O juiz voltou para me explicar que minha adversária tinha direito a um assistente vidente para vigiar as jogadas e nos apresentou.
A jogadora, que vou chamar de Lúcia, pele muito branca contrastando com cabelos negros, curtos e ondulados, menos de 1,60m e peso ligeiramente acima, tomou seu lugar. Os olhos eram aparentemente perfeitos, de um castanho-claro esverdeado, de maneira alguma enevoados ou deformados. Olhos bonitos. Ninguém suspeitaria de sua deficiência, ao vê-la sentada. "Olhava" diretamente em minha direção, o que me intrigou. Lembro-me de haver duvidado de sua cegueira.
A assistente colocou o tabuleiro e arrumou as peças, enquanto o juiz me explicava que as casas brancas ficavam em nível diferente das pretas e que todas as peças brancas eram coroadas por uma tachinha arredondada; as pretas não. Que a regra "peça tocada, peça jogada" continuaria valendo para mim, mas não para ela, que "via" com os dedos.
Ás 9 horas o jogo começou. Cortou meu coração ver a tremedeira de seus dedos, que tocavam cada uma das peças, suas e minhas, para sentir a localização. E a coragem dela de participar de um campeonato com pessoas que enxergavam me maravilhava. Tudo ao meu redor se dessintonizou, como numa música de Béla Bartók. Eu estava assombrada por aqueles dedos pálidos e trêmulos tocando todo o tabuleiro. Senti por ela uma angústia torturante e dolorida: das limitações em seu dia a dia, da falta de liberdade, da ausência da beleza das coisas.
O campeonato estava se realizando na "Gaiola das Loucas", nome sarcástico para a antiga sala de aeróbica cujas paredes de vidro ficando de frente para as piscinas, proporcionavam um espetáculo e tanto para os ocupantes das espreguiçadeiras.
Ali fora o tempo estava ótimo e fresco e ouvia-se o splash das braçadas atléticas dos rapazes, o burburinho de vozes, risos e os gritinhos felizes das crianças. Mas de repente eu não ouvia mais nada, como se isso tudo tivesse sido sugado para dentro de um vácuo. Meu corpo estava tenso como uma corda de violão.
O jogo continuou nesse clima, evoluindo com os habituais ataques e defesas de lado a lado, até que ela errou um lance, expondo sua Dama ao ataque do meu cavalo. E ela "não viu". Moveu outra peça. Ia perder. Não pude suportar.
- Sua Dama! - sussurrei.
- Que tem minha Dama? sussurrou de volta.
- Está atacada pelo meu cavalo.
- Onde?! Onde?! Não "vi"...
Aquilo doeu mais que tudo. Mas eu não podia fazer mais do que já dissera... Procurou com aqueles dedos assustados e encontrou sua Dama, procurou depois o meu cavalo, tremeu mais e perguntou baixinho:
- Posso voltar o lance?...
- Claro! sussurrei, até aliviada...
Ela voltou o lance, tomou meu cavalo e nem 5 minutos depois levei o cheque-mate... Não me deu a menor chance. Não me ofereceu a escolha de voltar o lance e eu pensei - "Tudo bem, eu tenho tudo, tenho mais que ela, coitadinha. Que bom pra ela.” E no momento não me importei nem um pouco. Ela estava mais do que feliz. . Tinha vencido o jogo contra uma vidente. Isso poderia ser muito importante para ela.
Depois do jogo, ficamos um tempo conversando. Lúcia, agora animada, perfeitamente segura, respondeu minhas perguntas e contou sobre sua vida: como perdera a visão aos 15 anos, em plena aula, durante uma prova; que de repente tudo ficara branco como neblina; que isso foi ainda piorando até que não via mais nem vultos. Só o branco. Sua visão se fora e os médicos confirmaram que não voltaria.
Continua

8 Comments:

At 24/5/07 7:28 PM, Anonymous Anônimo said...

Que marrravilha! Que bom ser o primeiro a comentar tão belo texto!
É o que eu digo e repito: como a Internet é fabulosa, permitindo este intercâmbio, permitindo a revelação de escritoras, como você. A cada lance, não do xadrez, mas dos seus textos ricos e cativantes, a cada lance mais um lado de sua personalidade é revelado. Cada vez mais fico orgulhoso de poder chamá-la de minha amiga. Agora, explica um detalhe. No texto vc diz: "E NO MOMENTO não me importei nem um pouco". Será que depois ficou arrependida de seu nobre comportamento?

 
At 24/5/07 9:09 PM, Blogger marianicebarth said...

Parece estranho, não é? Você verá no final do relato. Só estou esperando que os outros se manifestem, para contar o resto.

 
At 24/5/07 9:30 PM, Anonymous Anônimo said...

Sabe, admiro muito uma pessoa assim deficiente com essa coragem, não só de jogar, mas de se expor aos outros; nós sem nada disso, com TUDO, às vezes temos dificuldade de
nos lançarmos verdadeiramente na vida! É um ótimo aprendizado e oportunidade de agradecer...agradecer...e agradecer
por tudo de belo e maravilhoso que temos.

 
At 24/5/07 9:43 PM, Blogger Antônio said...

Mesmeu já dizia: "Nunca confie num cego! Pois todo aquele que é cego de visão, sem dúvida, gosta de levar vantagem em tudo."

 
At 24/5/07 11:47 PM, Blogger marianicebarth said...

Mesmeu dizia, é? Acho que não se aplica a todos os cegos...

 
At 25/5/07 6:50 AM, Anonymous Anônimo said...

Deficiente, hem? Todos nós somos mesmo "deficientes", todos nós temos lacunas, falhas. Há quem tenha QI baixissimo. Pior, há quem seja absolutamente incapaz de se emocionar. Há quem acredita apenas nos prazeres que se tem nesta vida. Há quem acredita apenas no dinheiro. E por aí vai ...

Há até os que não enxergam o Invisível!!

G. Turini

 
At 25/5/07 10:29 PM, Anonymous Anônimo said...

Caro Turini (Anonymous)

Deficiente foi uma forma de me expressar; trabalho como voluntária com crianças Down e sei muito bem do que está falando.
Amei sua última frase e vou repetí-la se me dá licença: " Há até os que não enxergam o invisível".
É isso aí!!!

 
At 25/5/07 10:32 PM, Anonymous Anônimo said...

Shiost
Seu amigo Zecão não gostará da observação de Mesmeu. Esqueceu-se do Sr Cintra?

 

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