sábado, fevereiro 28, 2009

Cem Anos... Capítulo IV

Pique, Santa e Belinha e a boneca horrorosa, em frente ao cobertor velho.



Pique e Belinha de cara amarrada. Por que será? Pelo visto, ninguém gostou da pose...
A minúscula Pique sobreviveu, até hoje, contra todos os prognósticos da parteira. Sem hospital, sem incubadora fechada, nem meio asséptico, num frio de rachar, sorvendo o leitinho materno gota a gota... Tendo por berço não uma manjedoura, mas uma caixa de sapato forrada de algodão.
E uma verdadeira Madona como mãe. A Mãe de Jesus que me perdoe a comparação. Até me atrevo a pensar que Nossa Senhora gostou do que eu disse. Cá entre nós, até pode mesmo ter gostado, se Os conheço bem, a Ela e a Seu Filho... Acho que estou influenciada pelo blog do Zeca, Proseandocomdeus, em que começamos a acreditar que podemos conversar com Deus assim, como eu e você.
Há outra história que mamãe contava dos tempos de pobreza, sobre o Leônidas e o José.
Dizia ela que os dois meninos tinham quase o mesmo tamanho, e quando chegaram à idade escolar, não havia dinheiro para comprar dois pares de sapatos, então ela comprava um só. Amarrava o dedão de cada um e eles iam para a escola calçando um pé do único par. Esse fato não a magoava e ela o contava divertida. Mas de repente lembrou-se de que numa dessas o Leônidas voltando para casa pegou um temporal a meio do caminho e resolveu infantilmente vir andando pela enxurrada. E não pode ver o caco de vidro que lhe cortou o pé horrivelmente. Daí em diante o coitadinho teve de ir para a escola com o pé amarrado por causa de um machucado de verdade.
Contava também que o José e a Santa não queriam estudar. O José queria ser operador do projetor de filmes do Cine São Pedro. Era o grande sonho dele. Não queria nada com o magistério, mas isso ia frontalmente de encontro à determinação de mamãe de formar todos os filhos professores, custasse o que custasse. (Porque professores e não engenheiros ou médicos ou advogados? Acho que ela tomava como exemplo meu avô Tonico, que a essas alturas já era diretor de Escola).
E a Santinha, cujo nome na realidade era Maria José, gostava muito de comer e queria ser cozinheira. Também não queria estudar, mas mamãe morreria antes de deixar que isso acontecesse... Arranjou uma boa vara de marmelo e ia ameaçando os dois recalcitrantes até o Instituto de Educação Peixoto Gomide, de onde voltava resmungando “Pois sim! Cozinheira! Co-zi-nhei-ra!! Onde já se viu? Operador de filmes! Esses dois vão ver só uma coisa! Hum!”
E sobre papai, o que tenho a dizer?
Papai foi o sonho de qualquer criança. Não me importava se ele trabalhou ou deixou de trabalhar, se ele ganhou ou deixou de ganhar dinheiro, se ele perdeu o emprego porque esmurrou o chefe da estação ou se o perdeu por qualquer outro motivo.
Para mim, ele era perfeito.
Imaginem o que uma criança de cinco anos, naquele tempo, gostava? Numa cidade que era deste tamanhinho e que não tinha quase nada para se fazer, exceto o Jardim da Infância, os dois cinemas a que só se ia aos domingos, as árvores do quintal para subir, as galinhas para atormentar, a cachorrinha para correr atrás, a gata e seus gatinhos para acariciar, a cabrita e o peru do Natal e o bilboquê. E os livros, claro, os livros de princesas e fadas-madrinhas, de bruxas más e de dragões, de maçãs envenenadas e de lindas carruagens que viravam abóboras.
Mas nada, nada mesmo me preparou para o que vou contar.
Imaginem o assombro e alegria esfuziante que senti quando, num fim de tarde, papai abriu o portão lá da rua de baixo e me chamou para ver uma surpresa. Fui correndo, curiosa. E o que vi?
Um carrinho duplo, de pipoca de um lado e algodão doce do outro!
Não é o sonho de uma criança pequena? E era nosso, papai falou! Anoitecia e papai ficou um tempão fazendo algodão doce cor-de-rosa só para mim, o quanto eu quis. Nunca, em toda a minha vida, senti-me mais rica, nababesca mesmo. Nenhum castelo de rei, nenhuma coroa de rainha, nenhuma lâmpada de Aladim teria para mim o mesmo encanto e valor.
Naquela noite nem dormi, pensando em como eu era feliz! E nas minhas coleguinhas do Jardim da Infância, que iriam morrer de inveja... Principalmente aquela Suelizinha que me mordera até tirar sangue... Um carrinho de algodão doce no meu quintal!
No dia seguinte, papai me levou com ele até a frente do Ginásio particular e tive a incrível experiência de ajudá-lo a vender algodão doce e pipoca para os estudantes. Mal demos conta!
E eu inchada de orgulho dele e do "nosso" carrinho. Ele me ensinou a contar o dinheiro e fazer o troco e voltamos para casa cheios de moedas.
Papai era bravo, sim, mas nunca comigo. Gritava sim, é verdade, mas não comigo. Eu o seguia todo o tempo, no "quarto escuro" da luz vermelha, vendo-o revelar os fimes, mergulhando o papel nos ácidos, adivinhando as fotos antes que surgissem completamente; e depois mergulhando-as na água várias vezes com aquele movimento sinuoso dos pulsos; e por último pendurando as fotos lá em cima, uma ao lado da outra. Maravilha das maravilhas. Fazer surgir alguma coisa do nada, pensava eu. Seguia-o quando ia buscar água na fonte da Vila Rosa, num garrafão de vidro, quando ia comprar lã na Casa Barth, que pertencia aos pais do Nelson. Quando voltava para casa e se dirigia à sua recente aquisição, a máquina redonda de fazer meias sem costura. Adorava vê-lo colocar a lã e começar a rodar aquela máquina impossível e a meia ir saindo, a lã rodando, rodando...
"Sem costura" era maneira de dizer, porque depois a mamãe tinha de costurar "o calcanhar e a ponta da meia, mas só isso", dizia papai.
Papai também era desenhista e inventor. Um verdadeiro Professor Pardal, que fazia coisas de sucata e eu era sua assistente, a Lampadinha.
No próximo capítulo.

6 Comments:

At 1/3/09 6:53 AM, Blogger caos e ordem said...

show de bola a maquina de algodão. Imagino a felicidade da menininha.
Pergunto à blogueira se conseguiu encomendar o livro pelo site que eu sugeri.

 
At 1/3/09 10:00 AM, Blogger marianicebarth said...

Consegui, Zeca, muito obrigada. Pelo link, fui direto.
Legal, não é, uma criança de cinco anos ter um carrinho de algodão doce no quintal?

 
At 1/3/09 11:15 PM, Anonymous Anônimo said...

AMO ALGODÃO DOCE! AINDA MAIS COR-DE-ROSA.
FIQUEI COM DESEJO AGORA!

 
At 2/3/09 10:06 PM, Anonymous Anônimo said...

São as diabruras da Nice, escreve tão bem, que chega a deixar o(a) leitor(a) com vontade de comer algodão doce cor de rosa. Que fantástico! Ter um carrinho de algodão doce e de pipoca! Bem se diz que a FELICIDADE é feita de pequenas coisas. Você, Nice, está apenas começando a acreditar que podemos conversar com Deus? Acho que não, pelo pouco que a conheço, me parece que conversa bem mais com Deus e com a Virgem do que muita gente.
Essa história de cortar o pé, num caco de vidro, dentro da enxurrada, essa história é minha. Foi um corte assustador, e ainda ganhei um tremendo puxão de orelhas.Deve ter sido por volta de
1944, ou 45. O acidente do Leônidas deve ter sido um pouco depois.
Estas memórias nos fazem pesnar.
Será que o tempo de hoje é melhor?
Menino nenhum anda mais na enxurrada. Se cortar o pé, é um Deus nos acuda, corre para o hospital, leva pontos, toma injeção, fica alguns dias sem aula.
No nosso tempo era assim: amarrava um pano (geralmente branco, mas me lembro de alguns de chita também),
e a vida continuava - aulas, trabalho, futebol no campo de poeira.

 
At 3/3/09 2:00 AM, Blogger marianicebarth said...

Timtim, o Leônidas cortou o pé na enxurrada lá por 1925 ou 26. Ele tinha uns nove ou dez anos nessa época. Hoje ele está com uns 93 anos, é inteligentíssimo, mais lúcido do que qualquer rapazinho que a gente conhece e um verdadeiro doce de criatura.
E você... é um broto!

Mas você está enganado sobre as minhas conversas com Deus. Eu pensava que falava e Ele nem ouvia. Mas o blog do Zeca me fez pensar um pouco e mudar de idéia. Gostei muito de ter Deus como um amigo que até conhece os palavrões...

 
At 6/3/09 7:09 PM, Blogger Polemikos said...

Por falar em falar com Deus, Nice, era preciso você ler o livro "Memórias, Sonhos, Reflexões" que é uma autobiografia de C.G. Jung. Escrito numa linguagem muito acessível, ele conta sua autobiografia "interna", a sua evolução pessoal e de suas experiências psicológicas, emocionais, etc ... mais do que os fatos que cercaram sua vida.

Entre outras coisas, ele relata a formação de suas crenças religiosas e refere tambem suas "conversas" com Deus.

É muito interessante - e original -a sua decisão de escrever com enfase total sobre sua vida interior. Para você que está escrevendo sua autobiografia (brilhantemente, diga-se de passagem), valeria a pena contudo ver o que ele fez com a sua autobiografia. Que se lê muito facilmente, senão eu não recomendaria!!

 

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