terça-feira, fevereiro 17, 2009

Cem Anos de Memórias - Cap II

Locomotiva a vapor 326 1927
Capítulo II


Era um moço alto e simpático e isso foi tudo o que ela disse. Mas a maneira como ela falava nele, embora em raras ocasiões, deixava entrever lá bem no fundo, um sentimento de nostalgia. Eu, adolescente, em plena fase romântica, sempre puxava o assunto e ela sorria imperturbável e tornava a explicar que apenas o encontrava de passagem, a caminho de alguma incumbência doméstica. Nunca trocaram nem uma palavra.
— Mas como ele era, mamãe?
— Ora, era um moço bonito, não sei mais nada, nunca conversamos. Ele só passava e cumprimentava.
— Mas porque ficou só nisso? A senhora não gostava dele, nem um pouquinho?
— Nem dá pra saber. Foi só... isso mesmo, me olhava, sorria, curvava-se e tirava o chapéu, só isso.
— Mãezinha, conta! A senhora gostou dele, não foi? Ela parava o crochê e suspirava.
— Eu tinha ficado noiva e nem sabia.
— Como assim!?
As mãos voltaram a trabalhar no crochê.
— Uma tarde voltei para casa e encontrei na sala meu padrinho e um outro moço que me vira na rua e estava lá pedindo minha mão: o Jango. Meu padrinho já aceitara o pedido.
— E a senhora não o conhecia?
— Não, nunca o tinha visto antes daquele dia. Ela levantou o crochê, esticou para todos os lados, pousou as mãos e comentou serena:
— Naquele tempo era assim...
— E o que a senhora sentiu? Gostou dele?
— Não existia isso de gostar ou não. A família era autoridade, não havia como não obedecer. — E o Fernando Rios? O que aconteceu com ele?
— Ele se casou com outra e muito tempo depois eu soube que morreu.
E isso foi tudo o que ela disse. Nenhum detalhe, nenhuma explicação. O que poderia ter sido um pretendente esfumou-se numa barreira imposta pelas famílias.

Mamãe e papai se casaram em 1910 e tiveram sete filhos.
Ele foi louco por ela a vida toda. Mas acho que não foi correspondido na mesma medida. E a vida deles não foi nada fácil, com tantos filhos e problemas financeiros.
Só agora me pergunto por que o tio-avô Jango não estudou mais, sendo tão inteligente como era. Só fez até a sexta série, assim como mamãe. Mas parece que ele não tinha uma profissão. O que sei é que trabalhou por muito tempo para a Estrada de Ferro Sorocabana, como “foguista” das locomotivas a vapor, apanhando o carvão e jogando para dentro da grande fornalha — um sem número de vezes — e acionando os monitores de água para a alimentação contínua da caldeira. Era um trabalho estafante, que lhe arrancava litros de suor, mas ele gostava muito. Tudo isso ouvi nas conversas lá em casa. Mas houve um problema qualquer com o chefe da estação. Papai brigou com ele e o esmurrou, perdendo o emprego, ou se demitindo, não sei. Nunca mais quis trabalhar como empregado, mas falarei nisso depois.
Dessa fase ferroviária de sua vida, papai conservou um grande amor pelas locomotivas, tanto aquelas em que trabalhou quanto as mais modernas. Ele tinha verdadeiro orgulho dessas máquinas e de ter movimentado aqueles pesados monstros de ferro.
Quando eu tinha cinco anos, fui com ele a São Paulo, de trem. Ele me fazia ouvir o apito, me colocava na janela para que pudesse ver toda a composição nas curvas e vibrava com minhas exclamações de alegria e com minha curiosidade. E me fez acompanhar o balanço dos vagões, murmurando:

— Veja, o trem dança! Veja como a gente oscila de um lado para o outro. E preste atenção, a locomotiva fala!
— É? E o que ela diz?
— Ela reclama... Ouça... Tem um ritmo: Muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo...
Só então eu percebia a queixa da máquina. Era verdade! Ela falava mesmo: Muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo...
E nós dois íamos recitando e oscilando, por grande parte da viagem, acompanhando o tchique tchique, tchique tchique ritmado da locomotiva.
Ainda agora, ao me lembrar de tudo aquilo, sinto o cheiro da fumaça no vento quente e as partículas de carvão que estalavam em meu rosto e ombros para fora da janela, e o calor das mãos fortes de papai me segurando cuidadosamente pela cintura.
Eu gostava demais dele.
E agora, gostariam de dar um passeio numa locomotiva italiana, junto com o maquinista e o foguista para verem como é? Acessem o link e... vamos lá!
http://www.youtube.com/watch?v=gFJe4YA4wxE&feature=related

Mas se quiserem, como eu, ver três vídeos maravilhosos no You Tube, vamos fazer juntos essa viagem em três maravilhas de ferro que o Brasil não teve:
http://moda.kiiweb.com/tecnologia/locomotivas-a-vapor/

15 Comments:

At 19/2/09 1:51 AM, Blogger marianicebarth said...

Primeiro, quero receber o Zeca de braços abertos, feliz por ele estar novamente entre nós;
Depois, quero explicar que às vezes refiro-me ao papai (que na realidade era meu tio-avô e avô da Primacaçula e do Shiost) como João ou Jango, que era o apelido dele.
E refiro-me à mamãe, esposa do Jango, como Juventina ou mamãezinha.
Está ficando muito confuso?

 
At 19/2/09 9:39 AM, Blogger caos e ordem said...

A história está repleta desses causos de amores hipotéticos.
Tenho uma teoria sobre essas situações, que aquele amor que não foi possível, que parecia o ideal, também acabaria em uma rotina, em intrigas e decepções, como tantos outros.
São amores perfeitos porque nunca foram testados, não se comeu nem um saco de sal junto, nem uma colher, nem uma pitada.
Não sei se a foto que enriquece o texto, ou se é a narrativa tão cheia de qualidades que valoriza a foto.
Gratíssimo pela recepção com seus calorosos braços abertos.

 
At 19/2/09 12:23 PM, Blogger marianicebarth said...

Isso nós temos certeza, Zeca. Que amores impossíveis só são ideais porque não se concretizaram. Principalmente naqueles tempos "do Onça", em que as mulheres eram recatadas, proibidas e guardadas pelos pais a sete chaves e eram tratadas pelos pretendentes como bibelôs de cristal, um tempo em que em que a reputação de uma donzela não podia ter uma pequena jaça.
Porém a história conta que os casamentos eram uma verdadeira decepção e que o tratamento dado às esposas DEPOIS das bodas era às vezes até cruel.
E que do lado dos homens, a decepção com seu bibelô era que geralmente as mocinhas não passavam mesmo disso e não aceitavam a realidade do casamento. Ainda hoje casamento "é uma loteria"...
Nem sei como ainda se casam os jovens. A convivência é uma arte e das mais difíceis.

 
At 19/2/09 12:28 PM, Blogger marianicebarth said...

A foto da locomotiva tem assinatura, Stênio Andrade Gutierrez, que deixei lá, para não ofender direitos autorais.

 
At 19/2/09 8:42 PM, Anonymous Anônimo said...

NOOSSAA!!!
Quanta coisa eu não sabia e que alegria compartilhar da história da minha família.
Ignorava que a vovó tinha um "amor" platônico antes do vovô. Aliás, nem sabia que ficou noiva sem conhecê-lo! Que horror! Não penso como o Zeca que esses "amores impossíveis" possam ser decepcionantes! E porque não poderiam ser possíveis? Quem sabe... se a vovó fosse capaz de enfrentar o costume diferente da época....!!!

Se não formos muito maduros, que amor poderá resistir à rotina diária, pergunto eu?

Não sabia também que o vovô foi foguista e que adorava trens. Engraçado: puxei dele esse amor e do vovô Arlindo, os cavalos!

Depois dessa briga, agora sei porque o papai dizia: "Esse gênio Silveira Mello"... e estava pronta a discussão entre mamãe e ele.

Sabe, Nice, eu tinha muito medo do vovô, talvez como vc. do meu pai. Veja que o carinho que ele tinha por vc. era o mesmo que o papai tinha por mim. Interessante! Eu peguei apenas o Filet mignon do Sr. Vital Brasil!

Olá, Zeca! Benvindo!

 
At 19/2/09 9:34 PM, Blogger marianicebarth said...

Porque tinha medo do Vovô Jango, Primacaçula? Será porque a Esther também tinha? Eu sabia que ele falava muito alto, se ficava muito bravo gritava e, como era surdo, não se importava com "o escândalo" perante a vizinhança, coisa que a mamãe abominava.

 
At 19/2/09 9:37 PM, Blogger marianicebarth said...

Alguém "viajou comigo" no You Tube?
Primacaçula, no primeiro link a viagem é na cabine de uma locomotiva italiana e você pode ver o que um foguista faz. Depois comente se gostou. O outro link é de três locomotivas imensa e espetaculares. É de estarrecer e a gente começa a entender a paixão que os homens têm por elas.

 
At 19/2/09 10:34 PM, Anonymous Anônimo said...

NICE, vc é demais! Uma narrativa tão detalhista, agora ilustrada pelos clips. Adorei a viagem, os detalhes do trabalho do maquinista e do foguista. O blog tem esta vantagem que um livro não tem. Também eu sou um aficcionado pelos trens. Fiz muitas viagens, na Paulista, na Sorocabana, na Douradense (que ia para N.Horizonte (minha terra natal "onde eu nasci"). Que saudades do Pullman (um trem de luxo, de Bauru a S.Paulo)! Continue, Nice, não está nada confuso. Está riquíssima sua narrativa.

 
At 20/2/09 8:41 PM, Anonymous Anônimo said...

Não era porque o vovô falava alto, mas simplesmente porque eu o achava bravo, talvez mesmo, influência da mamãe. Aliás, recebi muiiitas influências dela, tendo de me livrar de algumas, entre elas a de raio e trovão, após eu estar na fazenda da M. Christina falando ao telefone e este ser atingido por um raio, que acabou me causando pequenas queimaduras: ACABOU O MEDO AÍ! Interessante, não? ... após, pular no colo da mamãe, mulher feita e já mãe dos meus três filhos!

Mamãe tem uma história dela com o vovô que lhe causa tristeza e culpa. Qualquer hora escrevo!

 
At 21/2/09 2:42 AM, Blogger caos e ordem said...

Alguém escreveu que as palavras são uma fonte de confusão.
Gratíssimo pelas boas vindas da prima caçula, mas tenho a impressão de que ela foi confundida por minhas palavras.
Quiz dizer que frequentemente as pessoas têm problemas conjugais e ficam sonhando: ah se eu tivesse casado com fulano ou sicrana.
Quarenta anos atrás perguntei pra um sujeito muito sábio se o Gordini que ele tinha era um bom carro e veio a bela resposta: carro é parecido com mulher, a gente tem que gostar da que tem.

 
At 22/2/09 9:41 PM, Anonymous Anônimo said...

CONCORDO EM PARTE, CAOS!

Quem sabe o que teria acontecido se a pessoa tivesse casado com a outra? Quem poderá afirmar que não teria sido melhor? De repente...

Em relação a esta observação do seu amigo é bastante cruel, não?
NINGUÉM É OBRIGADO A GOSTAR OU A FICAR COM O QUE OU QUEM, ÀS VEZES NOS TRAZ MUITA INFELICIDADE E FRUSTRAÇÃO.

"VOCÊ ACEITA SOMENTE A FRASE "ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE"? OU DÁ ABERTURA PARA OUTRA OPORTUNIDADE?

 
At 24/2/09 9:10 PM, Anonymous Anônimo said...

PARECE QUE FUI UM POUCO RUDE NESSE MEU COMENTÁRIO?!
SE ASSIM SENTIREM, ME PERDOEM!

 
At 24/2/09 9:33 PM, Anonymous Anônimo said...

Não foi rude, não, irmãcaçula. È que este assunto é mesmo delicado, acho que envolve muito opiniões pessoais, talvez até vivências. Eu fico dividido: minha formação clerical me diz que deve ser "até que a morte os separe". Meu pragmatismo diz que há situações em que, por amor, a separação é a melhor coisa. Acho, também, que vivenciando um casamento de 39 anos, concordo com o pensamento lá do amigo do Zeca: "se vc tem um Gordini, goste do Gordini". Não acho que o pensamento seja cruel. Conheço pessoas que, tendo uma bela Mercedes, ficam de olho no fusquinha do vizinho.

 
At 24/2/09 9:36 PM, Anonymous Anônimo said...

Teclei errado e meu comentário saiu como de anônimo, mas é meu mesmo:Valentim.

 
At 28/2/09 12:11 AM, Anonymous Anônimo said...

É... olhando por esse ângulo, concordo, mas me pareceu algo indigesto e sofrido gostar desse "gordini"! Algo como "TOLERAR" não no sentido positivo de aceitar, mas no de "ATURAR" que considero bastante triste.

CADÊ A PRIMA NICE QUE NOS CONVIDA A COMENTAR?
EI, PRIMA, VOLTE POR FAVOR! SUA HISTÓRIA É ALGO QUE NOS FAZ FALTA!

 

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