quinta-feira, maio 24, 2007

Lição de Vida

Mas contou também que, depois dos primeiros meses de diagnósticos implacáveis, em que enfrentou a revolta, o medo, a tristeza e o desânimo, foi encaminhada a uma Instituição para Cegos, onde reaprendeu a viver sem esse dom. Ao mesmo tempo em que aprendia o Braile, desenvolvia a audição a um ponto que nós videntes nem temos noção. Começou a jogar vôlei, com guizos dentro da bola e um zumbido na rede; a mesma coisa acontecia no basquete com a bola e as cestas. Também corria quilômetros no Ibirapuera com uma camiseta com o dístico CORREDORA CEGA. Respeitável a mocinha!
Nisso chegaram duas crianças de tamanhos diferentes e uma adolescente. Ela "olhava" para cada uma nos olhos e falava com elas como se enxergasse. Novamente pensei que parecia que ela via alguma coisa e disse isso.
- Eu ouço - disse ela - e "sinto" as pessoas e animais chegando perto de mim. Sinto o calor e localizo a fonte da voz. Agora mesmo, estou ouvindo tudo o que se passa ali fora, cada pessoa falando ou rindo ou crianças chorando, estou sentindo o cheiro de cloro da piscina, ouço e filtro os ruídos, os cantos dos passarinhos, ao mesmo tempo em que falo com você. Ouço e sinto muito mais do que antes, quando apenas "via", mas não "enxergava". Você tem razão, de certa forma "enxergo" muito mais agora!
Meu assombro transformou-se em uma enorme compaixão... por mim, por ter sido levada por ignorância e excesso de sensibilidade a ousar sentir pena dela, que foi muito mais esperta, inclusive pedindo para voltar o lance e não me dando o mesmo direito, porque isso é um absurdo num campeonato. Inclusive, se o juiz tivesse visto, não sei o que poderia ter acontecido. Alguém sabe? Shiost?
Senti-me uma boboca por ter querido ajudá-la e hoje penso que teria feito melhor se tivesse jogado o meu jogo e dado mais trabalho a ela, pois era isso que ela esperava, para isso é que ela veio participar de um campeonato paulista e não para ser carregada ao colo por ninguém. Penso que sua vitória teria sido muito maior e mais importante.
Nos países desenvolvidos, se você tentar ajudar um deficiente de qualquer tipo, você leva um tremendo de um sabão! Pois eles fazem questão de ser aceitos e tratados como qualquer outra pessoa.
Errei redondamente. Mas isso não quer dizer que eu não admirei toda a sua conquista. Pelo contrário, tive nesse dia, não uma, mas duas lições de vida.

5 Comments:

At 25/5/07 4:31 AM, Anonymous Anônimo said...

Fez muito melhor do que eu que jogando futebol com 12 anos de idade derrubei o "perninha" que tinha uma perna artificial. Cinquenta anos depois ainda sinto remorso.
Para mim foi novidade saber que cegos jogam xadrez com videntes, gostei muito.
Está desafiada para jogar com apenas 2 minutos e eu com 20.
falou o Zecão

 
At 25/5/07 9:27 AM, Anonymous Anônimo said...

Apenas um episódio de minha estudantil. Havia um colega que afirmava ter um QI acima de 150. (E se dizia infeliz por isto). Cursava ao mesmo tempo Administração, Engenharia e Direito.
Um dia, no Grêmio, desafiou a quatro dos colegas, um deles sendo eu mesmo, a jogar uma simulatanea, às cegas, ou seja de costas, sem olhar para o tabuleiro, apenas guardando os lances que lhes eram cantados.
Ganhou os quatro jogos. Fomos tomar uma cervejinha depois que ele era inteligente, mas não de ferro.
G. Turini

 
At 25/5/07 10:37 PM, Anonymous Anônimo said...

Que frase linda: "apenas via, mas não enxergava". A maioria de nós apenas vê!

 
At 26/5/07 2:05 PM, Blogger marianicebarth said...

Zecão, você, aos 12 anos, ainda não tinha a formação que tem hoje, poe isso, não precisa ficar com remorsos pelo resto da vida por um errinho de adolescente. Mas o fato do Perninha jogar futebol é muito interessante! Justo futebol! Ele devia saber dos riscos que corria, como qualquer outro menino dessa idade...
E, Turini, que gênio, hein? Ainda que o Einsteinzinho tinha um pé na terra e um fraco pela cervejinha. O que aconteceu com ele? Teve sucesso na vida? Dizem os psicólogos que a maioria dos possuidores de QI muito alto acabam não se dando muito bem na vida...
E primacaçula, foi o meu caso, que via, mas não enxergava... Por isso foi que me arrependi do ato relatado, mas me senti melhor perdendo do me sentiria ganhando, se fosse o caso.

 
At 31/5/07 10:13 PM, Anonymous Anônimo said...

Que belo "divã" este blog, com os comentaristas confessando seus remorsos, relembrando vida estudantil, admirando expressões ricas como "via, mas não enxergava"!
Neste texto, Nice, conheci um poquinho mais de sua transparência e sensibilidade.

 

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