quarta-feira, maio 30, 2007

O vendedor de passarinhos

Ele vinha de longe, andando pela praia deserta, calças sem cor, muito usadas, furadas aqui e ali, camisa também sem cor, mangas compridas enroladas, chapéu de palha sem forma sombreando o rosto crestado pelo sol. Trazia ao ombro, atravessada, uma vara comprida de onde pendiam pequenas gaiolas de artesanato caseiro.

Não havia ninguém na praia como acontece fora de temporada.

Seu vulto traçava na areia uma sombra comprida e ondulante.

No quiosque só estávamos nós, o casal maduro, tomando um refresco e trocando idéias. Minha atenção foi atraída pela sombra que se aproximava.

De perto via-se que era mirrado, baixinho e muito maltratado pelo tempo. Parecia ter centenas de anos. Seu rosto magro era como um pergaminho, ou mesmo couro marrom enrugado. Os olhinhos vivos, alegres, poderiam ter sido castanhos, mas agora estavam enevoados. Os pés nus e encarquilhados como grossas cascas de árvore, não conheciam sapatos.

O velhinho com as mini gaiolas chegou até nossa mesa, sorrindo confiante, exibindo um único dente e acocorou-se:

- Ei, "pessoarrr"! Dia "bunito", né? Marrr verrrde! "Meuch" passarinho "gochta"! "Cêich"r qué vê?

E sem esperar resposta, pegando uma das gaiolinhas, pediu:

- Bate "parrrma", patroa!

Bati. E os dois passarinhos pipilaram. Senti uma coisa estranha, uma alegria despertada lá do fundo, com sabor de infância, que há muito tempo estivera ausente. Bati de novo e de novo cantaram. Não me contive:

- Ah!... Que bonitinhos!

- Num é "merrrmo", patroa? "Déi" real!

Seu sotaque era forte, puxando os erres numa mistura de Rio de Janeiro com Bahia e demorei um pouco para entender:

- Dez? perguntei.

- "Chô" caro, patroa? Faiz "otcho"!

- Oito?!

Pensando que eu ainda estivesse achando caro, baixou mais:

- "Setch", patroa!

Antes que ele nos desse de graça, pedi:

- Tudo bem, fico com dois!

Eu pagaria qualquer preço para sentir outra vez aquele calorzinho, aquele pedaço de lembrança, aquele sentimento sem nome que me surgira e que me despertara uma memória esquecida, um cheirinho de café com pipoca à luz do fogão na cozinha da minha infância.

Uma demora gostosa na escolha da cor e na beleza dos passarinhos e observando a expressão do velhinho, enlevado coma própria arte, o pagamento, e lá se foi ele todo feliz:

- Tchau procêis, pessoarrr! Êêê dia bunito!

Fiquei batendo palmas, deliciada, um tempão.

Já no carro, de volta para São Paulo, virava-me para trás para ver minha recente aquisição sonora que até hoje me diverte e me leva de volta às noites de inverno, com a família reunida ao pé do fogão da velha cozinha, tomando uma caneca de café quente e comendo pipocas, olhando as brasas que mamãe sopra de vez em quando, enquanto alguém conta histórias de fantasmas.

Pendurei uma das gaiolinhas perto da janela, na copa, de onde posso ver e curtir os passarinhos, que cantam quando rio alto.

8 Comments:

At 30/5/07 4:52 PM, Blogger Polemikos said...

Que "invejinha" de seu jeito gostoso de escrever, que consegue dar vida às coisas mais simples ...

Você escreve melhor do que muito cronista.

G. Turini

 
At 30/5/07 10:43 PM, Blogger Antônio said...

Alpiste pelo chão. Jornais sujos de cocô de passarinho. Ter que encher aquelas cumbiquinhas todo o dia... Trocar o jornal... Como é bom, ter empregada... Como é mesmo o nome dela?

 
At 31/5/07 7:37 PM, Blogger marianicebarth said...

O nome dela é Cida, mas você não entendeu que os passarinhos sãp de mentirinha, movidos a pilha? E que cantam quando alguém toca de leve na gaiolinha e que portanto não dão nenhum trabalho nem sujam coisa alguma? Não há cumbuquinhas para encher...
Talvez você não os comprasse, porque é um artesanato bem breguinha... mas que fazer se me lembro da casa da vovó Tina? Com seu eterno papagaio e outros bichinhos...

 
At 31/5/07 7:39 PM, Blogger marianicebarth said...

Turini, obrigada pelo elogio. Fico feliz de verdade!

 
At 31/5/07 7:41 PM, Blogger marianicebarth said...

E, Shiost, quanto tempo! Fico feliz de você aparecer! Sinto a falta do Blogguru quando ele some. Como vai Mesmeu?

 
At 1/6/07 9:31 PM, Anonymous Anônimo said...

Não invejo a verve da Nice, mas compartilho do comentário do Turini:
Entre as muitas crônicas bonitas que a Nice escreveu, esta é uma das melhores. Eu pude ver o rosto enrugado do tabaréu baixinho. Eu quis comprar uma gaiolinha também paradar alegria ao ambulante. Eu participei da alegria da compradora. Seu livro de crônicas está a caminho?

 
At 2/6/07 1:45 PM, Blogger marianicebarth said...

Um livro de crônicas é uma boa idéia. Vou começar a pensar nisso. Timtim, que bom que você voltou! Seja benvindo!

 
At 4/6/07 10:48 PM, Anonymous Anônimo said...

Nice
Que "delícia" este seu texto e que saudades da casa da vovó, onde passávamos nossas férias de julho. Tenho muitas lembranças, inclusive das histórias de fantasmas que me fizeram, quem sabe, hoje gostar deles!
Lembro também dos primos, uma certa quedinha pelo Zé Reinaldo; me recordo igualmente de um menino que conheci numa festa que faleceu logo depois que voltei à Limeira. Chamava-se Flávio??? Prometi encontrá-lo antes de viajar mas não fui, o que me deixou com remorsos por um bom tempo! VELHOS E BONS TEMPOS QUE NÃO VOLTAM MAIS!

 

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