domingo, setembro 30, 2007

Uma Grande Paixão – IV

Uma terceira gravidez, planejada.
Na tentativa de recuperar o irrecuperável romantismo dos primeiros tempos.
A primogênita, Carlota, morena clara como a mãe, os mesmos cabelos negros e fartos, ligeiramente ondulados, era uma criança bonita e meiga, doce e quieta como o pai. Estava então com três anos.
Leopoldina, a segunda, um ano mais nova, lourinha muito clara como o pai, passaria por verdadeira alemãzinha na própria Alemanha. Mas herdara o temperamento forte da mãe e a personalidade correta e severa do avô materno, Antônio.
Anna e Gustavo brigavam e se reconciliavam. Inúmeras vezes. Seria mais certo dizer que ela brigava com ele e sempre pelo mesmo motivo: ciúmes. E dizia coisas nesses momentos que ele não esqueceria, embora ficasse calado. Ela o provocava e se exasperava pela atitude fechada do marido. Queria que ele respondesse alguma coisa, qualquer coisa, mas ele baixava os olhos e nada respondia. Queria que ele negasse, que ele dissesse que a amava como antes. Queria que ele a tomasse nos braços e a beijasse, a aninhasse e pegasse seu rosto entre as mãos grandes e carinhosas, como antes... Mas, quanto mais ela brigava, mais ele se fechava.
Foi em meio a essas tempestades que fui concebida.
Suponho que ele ainda sentia alguma coisa por ela. Suponho também que ela às vezes saía para espairecer e que voltava tentando provocar os ciúmes dele, talvez falando sobre homens que a teriam admirado e com quem teria conversado. Mas de uma coisa tenho certeza: ela não conseguiria trair o homem que amava acima de tudo. Nenhuma mulher faz isso. Não cabe outro homem num coração de mulher que ama até à loucura.
A gravidez foi penosa e difícil com toda essa alternância de sentimentos negativos e positivos. Se os bebês escutam e sentem tudo dentro da barriga, devo ter ficado bem insegura lá dentro e assustada também. A existência do lado de fora possivelmente não teria me parecido muito atraente.
Gustavo apreciava muito a família dos tios de Anna, Pedro e Hermínia. Gostava também de seus filhos e, principalmente de Eva, a filha mais velha. Tio Pedro, fotógrafo, chamado na cidade de “Pedrão Retratista”, era o irmão mais moço de meu avô materno, Antônio, que era professor e diretor do Grupo Escolar de Morro Azul.
Gustavo pensava em Eva depois de cada briga com Anna. Não havia dúvida, somente Eva o compreendia. Ela era possuidora de um raro dom, o de saber ouvir as pessoas com toda a alma. Ela olhava nos olhos de quem estava falando, fazendo com que cada um se sentisse o único ser no mundo. Ela o escutava e só com ela ele conseguia falar sobre seus problemas. Se isso se transformou em amor, não sei. É possível. E talvez dos dois lados. O que sei é que isso, olhos nos olhos, é mais irresistível do que qualquer paixão, pois acaba se tornando em uma entrega de almas.
Anos mais tarde, Eva me falava sobre Gustavo com muita doçura. Talvez ela o tenha amado sem esperança, ou talvez, tenha sido correspondida. Não há como penetrar os segredos das pessoas. Entre as coisas que ela me dizia quando eu já estava com uns doze anos, é que ele fora o melhor dos homens, além de ter sido o mais belo que já vira. Aliás, isso era unânime nas duas famílias. Dizia-me também que sua prima Anna era a mulher mais fascinante e dramática que conhecera e que sempre sentira grande admiração por ela. Eva, diretora de escola, tinha um timbre de voz alto e forte, de comando, mas quando falava de Gustavo, sua voz transformava-se em suaves entonações de sonho e nostalgia, que em minha inocência, eu não percebia.
Mas Anna, pobre Anna, começou a mostrar sinais inequívocos de estar perdendo a noção de realidade. À medida em que a gravidez atingia os últimos dias e ela via refletir-se no espelho a imagem inchada e pouco atraente de uma mulher desconhecida, ciúmes doentios a enraiveciam, transformando-a na pior das companhias para o marido cada vez mais calado, que foi se afastando dela a cada dia mais e se enclausurando num poço de silêncio até a cessação completa do amor.
Ele desejava sair dessa situação, desse casamento errado que dera em nada, ou pior que isso, que dera nesse horror. Ele quase a odiava, ou melhor, quase odiava a pessoa em que ela se tornara.
Mas havia as crianças, que ele amava muito. Seu xodòzinho era a pequena Dina, cópia dele na aparência e tão semelhante à mãe na personalidade, aquela mulher por quem se apaixonara e que desaparecera. Ele se sentia preso e amarrado, em um círculo sufocante de gritos e explosões sem motivo. “Ela” estava louca, pensava ele horrorizado. Imagine ter ciúmes até da própria prima, que gostava tanto dela... e dele... Estava confuso. Precisava conversar com Eva sobre isso. Ela deveria ter uma solução. Iria aconselhar-se com Tia Hermínia, que era como uma mãe para ele. A tia poderia conversar com Anna e convencê-la a parar com isso. Ele não suportava mais e já há algum tempo começara a desejar uma impensável separação, o desquite.
Mas... e essa criança indesejável que ia nascer, nesse ambiente horrível? O que faria com ela? Não a queria, era fruto do fim de um amor. Mas as outras... Não poderia deixar suas filhinhas! Como fazer para ficar com elas?
Resolveu dar uma escapada até Morro Azul para conversar com Tio Pedro e Tia Hermínia, pedir uma orientação. Recomendou à empregada que cuidasse bem de Anna e das pequenas e saiu logo pela manhã de uma terça-feira, para voltar no mesmo dia.Tomou a jardineira lenta e sacolejante pela estrada de terra, demorando duas horas e meia pelo caminho que hoje percorremos em cinqüenta minutos. Ia preocupado e triste, cenho franzido, fundos suspiros levantando seu amplo peito, mas lá no fundo uma esperança de não sabia o quê.
Anna ouviu quando ele se levantou, ouviu-o falando baixinho com a empregada e depois a porta da rua rangendo. Ele saiu... — pensou ela — Para onde? E, súbito, um medo irracional a possuiu, medo de perdê-lo. Não, isso não podia acontecer! Ela morreria, sim morreria... Ela o amava, ainda mais do que antes. E ele também, não podia ser diferente! Brigavam porque se amavam. Ou será que não? Será que ele não a amava mais? Ela sufocou, num espasmo de medo que se transformou em terror. O que estava acontecendo com ela? Com ele? De repente lhe veio à mente torturada a figura da prima sorridente olhando para ele e, principalmente os olhos dele presos nos da prima... E ela gritou:
— Nãããão! Nãããão! Nããããããão!
A empregada apareceu correndo:
— O que foi, D. Anna!!!? A senhora está bem?? O que a senhora tem? Ah, meu Deus, é o bebê? Já vai nascer?
Anna conseguiu se controlar. O bebê. É verdade, o bebê. — Não... não é nada... estou bem... estou bem... Não, não é o bebê. Onde está meu marido?
— Ele disse que foi a Morro Azul, conversar com os tios... — respondeu a moça, enquanto via a transformação da patroa, o medo, ou... qualquer coisa assustadora nos olhos dela. — D. Anna, o que a senhora tem? Quer que chame o médico? Por favor, D. Anna, deite-se um pouco. D. Anna, D. Ana! Calma, D. Anna, por favor. Oh meu Deus, o que eu faço?
As crianças apareceram na porta do quarto, abraçando-se, as mãozinhas na boca, os olhos enormes de pavor. A mãe andava de um lado para o outro segurando a barriga, respirando fundo e olhando para cima, clamando a Deus.
Carlota começou a chorar baixinho e Dina, mais corajosa se adiantou:
— Mamãe? Mamãe?...
Anna parou de andar e olhou para a filha de dois anos e meio como se não a visse ou não a conhecesse, a mente inteiramente tomada pela figura graciosa da prima. Demorou um tempo a voltar à realidade.
A empregada pensou: — Meu Deus, ela está enlouquecendo... E o marido não está... Anna falava baixinho e andava de um lado para o outro: Tia Hermína... Tio Pedro... Não vão permitir! Não vão permitir! Tamanha desgraça! É isso! Eles não vão... Não podem, não podem! Ah... Quero morrer! Quero morrer...
E caiu, desmaiada.
Quando Gustavo chegou, às quatro da tarde, o médico tinha vindo, sedara-a e ela estava dormindo. A empregada contou tudo e ele ficou preocupadíssimo. A empregada dissera que Anna parecia estar enlouquecendo. Ele foi procurar o médico, ouvindo deste que sua mulher precisava ser internada. Recomendou uma clínica psiquiátrica em São Paulo, logo depois que o bebê nascesse.
Ele voltou depressa para casa. As crianças... A imagem tocante das pobrezinhas tão assustadas, Dina abraçando e protegendo a irmã mais velha parecia uma coisa irreal. Carlotinha se calara e não havia o que a fizesse falar. Seus olhos grandes aprisionavam toda a tristeza do mundo. Dina, ao contrário, parecia estar mais crescida, mais velha do que seus dois anos e meio...
Na manhã do dia seguinte, 24 de março de 1943, às 7:10 eu vim ao mundo. Um mundo triste demais e entrei nele calada. Contou minha mãe que não me separei da bolsa e da placenta, só com a cabecinha de fora. Ela ficou de cócoras na cama para me proteger, enquanto meu pai corria a chamar a parteira.

Anna não sabia ainda que sua vida já estava traçada pelo médico antiquado, que um futuro medonho a aguardava e nem imaginava que seu sofrimento ainda não atingira o ápice...

sábado, setembro 29, 2007

Uma Grande Paixão – III


Em sua casa no sítio, Gustavo terminava seus afazeres no curral. Filho mais velho dos dez, era o braço direito do pai. Cursara apenas o que hoje equivale ao colegial e até ali não pensara em continuar os estudos. Até conhecê-la. Então tudo mudou. Queria ficar à altura da doutora, não mais ser apenas um camponês, um caipira.
O gado já se encaminhava lentamente para o descanso noturno, as galinhas já se empoleiravam. Desarreou e escovou muito bem o cavalo, refrescou-o e soltou-o para pastar, com um tapa carinhoso na anca.
A tarde findava, um sol morno desaparecia por trás da montanha, partículas de poeira dourada dançavam no ar.
Gustavo tirou o chapéu e enxugou o suor da testa com as costas da mão. Recostou-se no mourão da cerca, pensativo. Seu olhar perdeu-se na direção do rio. Iria pedi-la em casamento, estava resolvido. Mas antes devia falar com seu pai sobre o que resolvera. Não ficaria no sítio. Depois de casado, iria para a cidade ajudar Anna no consultório e à noite estudaria odontologia.
Foi caminhando devagar para a casa. Não estava muito certo da reação do pai.
— A dentista? — perguntou D. Ernestina, em geral tão calada e reservada — mas ela é mais velha que você... uma doutora... Com tanta mocinha nova na cidade... do seu nível... — ela observou melhor o filho, notou o maxilar apertado, conhecia muito bem o seu menino — Você já decidiu, não é, meu filho?
— Que história é essa, meu filho? Mulher mais velha? — sondou o pai, testa franzida.
Gustavo expôs em poucas palavras, não era de falar muito. Terminou dizendo que estava gostando cada vez mais da moça e que queria se casar com ela e que idade não importava. A mãe nada disse, só disfarçou um longo suspiro. Não adianta argumentar — pensava ela — seja o que Deus quiser.
“Seu” Francisco não olhara em seus olhos nenhuma vez enquanto ele explicava mais ou menos como a conhecera. Gustavo nem pensou em dizer o que sentia pela moça, nem o quanto a admirava por ser tão independente.
... e além do mais — terminou Gustavo — os pais dela já são falecidos e ela está morando com a irmã mais velha e casada. Peço permissão para trazê-la aqui e apresentá-la aos senhores como minha noiva.
Depois de um longo silêncio o velho Francisco concordou. A moça poderia vir na semana seguinte. A conversa estava encerrada e cada um ficou com seus próprios sentimentos conflitantes. "Seu" Francisco não conversou com a mulher sobre isso e D. Ernestina, olhos fechados, rezava por seu filho, apreensiva. Tentava evitar o pensamento pessimista que se insinuava.
O domingo amanheceu fresco e brilhante. Sol de Abril. Gustavo foi para a cidade e procurou Anna para irem à missa. Achou-a radiante no vestido branco. Ela contou seus planos: depois da missa, ouvir a banda, depois da banda, passear de mãos dadas... Ele sorriu, sentindo vontade de beijá-la. Estava muito, muito feliz. Olhou-a bem dentro dos olhos e disparou, certo do amor dela:
— Casa comigo?
— Mas é claro! — ela respondeu sem titubear.
— Quando?
— Que tal em Agosto?
— Combinado. Vamos falar com o padre depois da missa.
— E com dona Marina, a costureira. Vou mandar fazer um vestido bem lindo.
— E no próximo domingo, você vai conhecer meus pais. E irá como minha noiva. Então beijaram-se longamente, pela primeira vez.
Quatro meses depois, Agosto de 1937, estavam casados.
Ele começou a ajudá-la no consultório e amadureceu a idéia de fazer Odontologia. Nada mais inteligente do que ter um consultório para os dois — dizia ela.
Resolveram mudar-se para uma cidade grande que tivesse essa Faculdade. Optaram por Sorocaba e tudo correu como haviam planejado.
A primeira filha nasceu em julho de 1939 e a segunda um ano depois.
A vida começou a ficar mais difícil com as duas crianças, consultório em casa e o outro emprego de Anna como dentista do Grupo Escolar. Mesmo com a empregada contratada, Anna estava começando a dar sinais de stress e de seu forte temperamento. Andava começando a ter dúvidas sobre a fidelidade do marido. Não podia deixar de perceber os olhares derretidos das mulheres, todas elas, de todas as idades. E não conseguia deixar de pensar que ele parecia estar começando a gostar disso. Continuava tímido, o que tornava as mulheres cheias de atenções para com ele. Principalmente sua própria prima, aquela mais querida de todas, a que mais se parecia com ela, Eva, mais jovem quatro anos e ainda solteira. Tentava afastar essa idéia incômoda. Não sua prima! Não poderia suportar isso!
Passou a observar os dois. Morria de ciúmes ao vê-los trocar idéias e ao notar que "ela" ficava toda corada e toda... sensual?... quando Gustavo aparecia. Com certeza "ela" mudava. De firme e segura de si que era, sua prima ficava até um tantinho sem jeito. E dirigia olhares rápidos e fugidios para Anna. — "Mas não! Não pode ser!" — seu espírito reto e franco se revoltava ante essas considerações. "Devo estar louca! Pensar essas barbaridades de minha priminha... Devo estar louca com certeza"...
Mas o ciúme foi crescendo, crescendo e tomando conta dela. Tinha ciúmes de todas. E dos pensamentos dele. Achava que ele não parecia mais o mesmo. Sentia uma vontade de fugir com ele, fugir de tudo e de todos. Tê-lo só para ela. Lembrava-se de quão carinhosamente ele a tratava quando estivera grávida. Impulsivamente resolveu ter mais um filho.

sexta-feira, setembro 28, 2007

A Princesinha - 8 meses


Até coroa já tem

segunda-feira, setembro 24, 2007

Uma Grande Paixão – II


Durante algum tempo, Anna e Gustavo mantiveram um namoro encantado e inocente, nos moldes daquela época.
A cidade, muito pequena, era quase uma aldeia. Por trás de cada janela, as cortinas ocultavam olhares curiosos. Não era comum que solteironas de quase trinta anos namorassem rapazes mais novos. Era preciso ter muita coragem ou uma paixão acima de qualquer comentário. A língua do povo era afiada e acontecimentos de qualquer tipo, eram raros. Não havia veículos, exceto bicicletas, charretes e carroças puxadas a cavalos ou bois. De vez em quando, passava um caminhão ou um ônibus, naquele tempo chamado de "jardineira". Não havia acidentes ou roubos ou assassinatos. Nada para se falar, nada para causar assombro. Um vazio de emoção.
As mulheres casadas não trabalhavam fora. Homem nenhum admitia isso. “Mulher minha não trabalha fora, eu posso sustentar família sozinho” ― diziam uns para os outros ― “Lugar de mulher é em casa.” “Mulher direita é apenas dona de casa, mãe dos meus filhos” ― rugiam.
Não havia um clube, nem sequer um cinema. Apenas o rádio para o entretenimento das famílias. O boteco para as conversas masculinas. E a igreja para as obrigações dominicais. "A religião é um freio" - diziam os maridos.
E havia o costume de, no fim da tarde, cada mãe de família colocar uma ou duas cadeiras na calçada e sentar-se para olhar os filhos que corriam e brincavam na rua de terra com as outras crianças da vizinhança. Era a grande hora da confraternização. As mães acabavam reunindo suas cadeiras e a conversa em voz baixa começava. Era a hora das fofocas e dos risos abafados. Maldades eram servidas em bandeja. Julgamentos e condenações eram saboreados com avidez. Ninguém escapava. Era preciso ter muito cuidado. "As paredes têm ouvidos"...
Os papais chegavam, tomavam seu banho e se reuniam aos outros maridos.
Durante uma hora ou duas tudo era posto em dia. Quando não havia novidade alguma, as mais velhas faziam crochê ou tricô de acordo com a temperatura, ou trocavam receitas e figurinos, ou mostravam revistas, as mocinhas solteiras bordavam, falavam sobre futilidades ou apenas ouviam as conversas das mães e avós. O relógio andava muito devagar e havia tempo para tudo.
O assunto feminino do momento era o namoro da dentista coroa com o homem mais novo e bonito. Sobrancelhas franzidas ou alteadas, olhares enviesados, sussurros viperinos, todas desaprovavam, as cabeças movendo-se de um lado para o outro.
As avós previam sofrimento, as meninas ralavam-se de inveja: “O quê ele viu nela? Uma velhota de quase trinta anos! Nem bonita é! Desmilingüida! Devia se envergonhar! O que é que ela tem? O que ela pensa que tem? E ele que nunca nem olhou para mim! Nem para mim... Para nenhuma de nós! Orgulhoso! Cheio de si! ” E por aí os comentários ferviam e o veneno espirrava.
Era então que ela aparecia. Vinha pensativa, as faces coradas, os olhos baixos, um semi-sorriso enlevado, narinas palpitantes... Estava em êxtase, pensando nele...
Cabeças aprumavam-se, queixos erguiam-se, sobrancelhas lá em cima, todas calavam-se. Em volta delas a temperatura baixava alguns graus.
De longe, ela olhava a cena, divertida. Sabia que falavam dela, sabia do que se tratava. Suspirou. Paciência. Nada a fazer. Foi chegando, enfrentando os olhares. Os olhos dela, serenos, amáveis. Sentia o veneno que embalsamava o ar. Algumas das mocinhas nem disfarçavam.
Cumprimentou ao passar, algumas responderam um tanto secamente, outras excessivamente melosas. Caçoavam dela, as infelizes. “Pobrezinhas... É verdade que não tiveram chance”... Levantou a cabeça altiva e continuou seu caminho, sem mudar o passo nem um pouquinho. Que pena. Pensava ter feito algumas amizades. Sorriu de leve... Mas virando a esquina já se esquecera delas.
Tinha mais em que pensar.
Ele chegaria no dia seguinte e ela queria se embelezar. Lavaria os cabelos, perfumaria e escovaria cem vezes para que ficassem brilhando e vestiria o vestido novo, de linho branco, para fazer contraste com sua pele e cabelo.
Sabia que estava muito mais bonita desde que o conhecera. O espelho lhe dizia isso todas as manhãs. Ela se surpreendia, pois sempre fora o patinho feio da família, ou pelo menos pensava assim. E agora, que transformação! Estava colorida, viçosa.

Durante o banho de imersão, rodeada de espuma, deixou-se descansar enquanto fazia planos para o dia seguinte. Iria com ele à missa e depois à praça, ouvir a banda no coreto. Depois andariam de mãos dadas, escandalizando a todos ainda mais. Oh! Como era feliz! E como o amava! Perdia até o fôlego ao pensar nisso. Sentia-se magnetizada, cada fibra de seu ser vibrava como um diapasão.
Fechou os olhos e sonhou que ele a estava beijando.

sexta-feira, setembro 21, 2007

UMA GRANDE PAIXÃO - 1

A primeira coisa que se notava era seu charme.
Ao falar sobre qualquer assunto ela até parecia bonita, muito mais bonita do que era, na verdade. Pele clara, cabelos negros e fartos, levemente ondulados e revoltos que usava pelos ombros, olhos daquela cor verde-mel mutável e indefinível, o contorno da íris bem delineado, tudo sombreado por cílios macios, longos e curvos.
Animada, vibrante, contestadora, suas palavras costumavam prender e subjugar seus interlocutores que não se furtavam de pensar “Como é atraente!” — ou até — “Como é brilhante”!
Gustavo era bonito como somente alguns homens sabem ser. Indiscutivelmente bonito, não admitia isso como uma qualidade. Não era coisa com que um homem de verdade se preocupasse. Detestava quando as irmãs ficavam falando sobre isso, rindo e brincando.
Nada havia de delicado nele. Macho até a raiz do cabelo castanho claro, quase louro, no entanto era tímido. Ficava constrangido ao se sentir observado pelas mocinhas, o que era freqüente. Gostaria muito de poder passar despercebido, mas seus ombros largos e altura muito acima da média o evidenciavam por onde passasse. Deixou crescer o bigode numa tentativa de parecer mais velho ou mais sisudo. De nada adiantou. Alguns homens conseguem ficar bem de bigode ou barba, outros conseguem até melhorar.
Olhos fascinados voltavam-se para ele, seguidos de suspiros e sussurros. Ele enrubescia facilmente, o que o mortificava. Não olhava para nenhuma delas, franzia o cenho e apertava os lábios cheios, o que as meninas achavam totalmente irresistível.
Algumas faziam de tudo para chamar-lhe a atenção, o que piorava tudo para elas. Não que ele não gostasse das mulheres, longe disso, mas nos meados dos anos 30, antes da Segunda Guerra, entre homens e mulheres jovens e casadouros havia como que uma imensa placa de vidro espesso. Uns viam os outros, mas só podiam chegar perto ou tocar-se depois do casamento.
A única que não demonstrou ter ficado impressionada com sua aparência foi aquela moça nova na cidadezinha, Anna.
Era a nova cirurgiã-dentista e não era tão mocinha. Uns cinco anos mais velha do que ele. Ela não gostava de homens bonitos e presunçosos, menos ainda os muito jovens. “São todos uns garanhões insuportáveis, pensam que o mundo gira ao redor deles, como aqueles danados da faculdade, os filhinhos de papai...”
Anna passou por ele uma vez, mas estava tão apressada que apenas registrou em sua mente rápida a presença marcante do rapaz — “Nossa que moço bonito nesta terra de ninguém. Ora, deve ser outro daqueles metidos a besta” — sem dar a ele maior atenção.
Ele passou por ela “Ah, essa é a tal dentista...” e continuaram seus caminhos, fingindo que não se viram.
Ele morava com os pais e irmãos na fazenda e não vinha à cidade muitas vezes. Até que sentiu durante alguns dias uma dor cada vez mais forte num dente. — “Procure a dentista nova, dizem que é muito boa” — disse a mãe.
A macheza toda não foi suficiente para agüentar toda a intensidade daquela dor. E, numa quarta-feira logo cedo, depois de noites sem dormir, seguiu para a cidade e para o consultório.
Ao chegar a vez dele ela teve de se controlar e piscou duas vezes ao vê-lo tomar tanto espaço em seu consultório. Detectou uma sensação diferente que de imediato tentou descartar. “Sente-se, por favor”. Suspirou disfarçadamente enquanto lavava e relavava as mãos. O coração saltava no peito. “Pare com isso, o que lhe deu? É apenas um rapaz, jovem demais! Se tiver vinte e quatro é muito!” pensava ela aturdida. Retomou sua atitude profissional e voltou-se para ele, muito séria:
— Vamos ver, seu rosto está inchado... Abra a boca.
Ele obedeceu docilmente, fechando os olhos. Ela olhou para ele, aprisionado na cadeira, à mercê de pinças e brocas.
“Ele é... ele é... não sei, é... diferente... parece... deve estar com muita dor, deve ser isso.” — pensou, mas tomando seu tom mais profissional, disse apenas:
— Hum-hum, estou vendo, é o segundo molar inferior. Não posso fazer nada agora. Vou receitar um anti-inflamatório e um analgésico e você pode voltar quando o inchaço ceder e não estiver doendo mais. Só então poderei tratar.
Escreveu a receita rapidamente, enquanto o rapaz se levantava. O coração dela deu mais uns pulos. “Nossa, o menino é bonito mesmo... Mas você... você se controle!”...
Ele estava com tanta dor que apenas agradeceu a receita e saiu para a farmácia.
Na segunda-feira seguinte ele já estava no consultório quando ela chegou. Cumprimentou-o muito séria, já se auto censurando pelos saltos e pinotes coronários que não conseguiu evitar “Ah meu Deus eu não estou entendendo... o que é isto”?
Sim, ele era bonito, mas tinha algo muito mais interessante, uma espécie de candura, um olhar aberto e... puro?... Seria possível isso? Ela não sabia, nunca vira nada igual. “É por que é um menino ainda, um jovenzinho... Pare com isso, você é quase uma balzaquiana, quase trinta... uma solteirona que nunca se apaixonou”... Ela sacudia a cabeça de um lado para o outro, indignada consigo mesma.
Chamou-o, ele sentou-se e ela se aproximou, olhando somente para o dente dolorido, evitando os olhos que, aliás, ele fechara. Ela sossegou um pouco.
Conseguiu tratar o canal e obturar aquele dente com toda a competência de que era capaz.
Quando terminou ele abriu os olhos... e olhou para os olhos dela, tão próximos que ele pode ver o mel mudar para verde, com todos os risquinhos da íris, admirou o tamanho dos cílios e a profundidade absoluta daquele olhar. Ele estivera também sob a tortura do perfume embriagador e do calor da pele da moça. Nunca se achara tão perigosamente próximo de uma mulher. Viu de relance pulsar a veia do pescoço dela e mais sentiu do que viu o embaraço da moça, que se afastou rapidamente para o fundo do consultório. Essa espécie de retraimento feminino foi o que ainda mais o interessou, somado a todo o resto.
Pela primeira vez ele se sentia inteiro.
Então, olharam-se novamente. Ele teve a impressão de estar caindo no abismo daquele olhar. Ela sentiu algo assim como uma corrente elétrica e todo o seu ser mudou. Ficaram como que paralisados pela violência de uma emoção jamais experimentada.
A revelação mútua foi como uma implosão de sentimentos.
Num único minuto duas vidas se entrelaçaram, mescladas como dois rios que se encontram a caminho do mar.
Não mais “ele e ela”, mas apenas “um.”
(continua)

quarta-feira, setembro 19, 2007

Rebecca fez 8 meses


E está cada vez mais tudo!
Já está se lambuzando de sopa ou de fruta...
Já tem dois dentinhos em baixo e meio em cima...
Já chama o Daddy de da...da...
E a Mammy de ma...ma...
Já engatinha pela casa toda e adora o parque com as crianças.
E diz a Alê que ela é uma alegria só!
Que Deus a abençoe e proteja sempre!

segunda-feira, setembro 17, 2007

A Linguagem das Mãos


DESENHO MEIO CEGO (de 1988)
Alguém tem idéia do que é um Desenho Meio Cego?
E um desenho Cego?
Suponho que só a Maria Gilka sabe o que é isso.
No Desenho Meio Cego você não olha para o papel, só para o modelo, mas o papel não está tampado e você pode enxergá-lo com a visão periférica. Quando o desenho chega no limite do papel, um assistente coloca outro para que você possa continhuar desenhando, e prende este último com fita adesiva. O assistente vai prendendo mais folhas à medida que o desenho vai crescendo.
Já no Desenho Cego, a folha de papel é tampada e você desenha por baixo dela, sem ver o que está sendo traçado. Você olha só para o modelo e trancreve para o papel cada tracinho e detalhe do modelo que pode ser qualquer coisa: um vaso de flores, ou algumas frutas ou uma pessoa posando. A condição é você não olhar.
Para que serve isso? — vocês devem estar se perguntando — Se desenhar olhando já não é fácil, para que complicar desenhando por baixo de outra folha?
Acontece que esse é um excelente exercício para desenvolver a criatividade e "enganar" o lado esquerdo do cérebro, que critica o tempo todo inibindo a capacidade criativa.
Vejam o desenho acima (Meio Cego).

sábado, setembro 15, 2007

Comum, comum...

Uma cadeira comum, comum, quando puxada por um homem para uma mulher se sentar, transforma-se na mais nobre das cadeiras.

Uma porta comum, comum, quando aberta por um homem para uma mulher passar, transforma-se na mais importante das portas.

Aquelas flores comuns, comuns, quando ofertadas por um homem para uma mulher transformam-se no mais valioso dos presentes.

Aquelas palavras comuns, comuns, quando proferidas por um homem com todo o amor no coração por uma mulher, transformam-se no mais cálido e sensual dos versos.

Esse homem pode ser comum, comum, mas para essa mulher, só para ela, ele é o mais maravilhoso Príncipe Encantado de todo o Universo... E, para ele, só para ele, ela é a "sua Princesa"!

E não há mulher que resista... pois... isso é o velho e imorredouro romantismo.

Encanto, Encanto...

sexta-feira, setembro 07, 2007

PORTAS BRUTAS

E as portas brutas que encontrei cerradas
Guardiãs secretas do Desconhecido
Intransponíveis e enfileiradas
Me despertaram algo adormecido
Então lutei, lutei... e elas riram
De meus esforços vãos e tentativas
E minhas forças fracas sucumbiram
E derrotada tive de ir em frente
Tão aviltada quanto impotente...

terça-feira, setembro 04, 2007

ÔNIX



Ela era negra. Retinta. Azulada. E tão pequenininha!

Seus olhos verdes enormes dirigidos diretamente para os meus pareceram-me extraordinários, inteligentes e misteriosos. E comunicaram imediatamente uma mensagem estranha, telepática, quase sobrenatural.
Poucas vezes vi um olhar tão perfurante em toda a minha vida.

Tomei-a no colo e senti que se aconchegava dócil e satisfeita, macia como seda. Seu pêlo brilhante e liso atestava saúde, assim como seus grandes e limpos olhos verdes.
Ela semi-cerrou as pálpebras e ronronou, fazendo-me saber que confiava.

Perguntei ao dono da farmácia de quem era.
— Não tem dono — respondeu — Apareceu na porta esta manhã, deixada por alguém.
— Posso ficar com ela?
— Pode, se quiser.

Continuei com ela no colo, já lhe procurando um nome. “Ônix”. Perfeito. Deixada numa porta, abandonada à própria sorte, um bebê... Inteligente, carente e sossegada. Não teria mais que um mês de idade. Estaria com fome?

— O senhor deu leite ou alguma coisa?
— Não, não dei nada.
— Vou levar comigo. Cuido dela.

Eu tinha dezessete anos e morava num pensionato de freiras para universitárias, em meu primeiro ano em São Paulo. Voltávamos da faculdade, Celina e eu. Meu impulso de ficar com a gatinha que me havia adotado com tanta confiança como se eu fosse sua mãe, iria me trazer problemas. Foi o que Celina foi dizendo pelo caminho. Concordei com ela, mas não iria voltar atrás. Sabia que seria um desafio e tanto burlar a vigilância das Madres e da faxineira.

— Você vai ver, elas vão obrigar você a botar a coitadinha na rua.
Você é que vai ver como eu consigo ficar com ela. Com a sua ajuda, é claro! E das outras. Vai dar certo! — Eu sabia que a Celina adorava gatos, tanto quanto eu.

Ao passarmos em frente à quitanda, encontrei uma caixa retangular de frutas, de papelão, jogada na calçada. Numa construção próxima havia um monte de areia seca. E assim construí o banheiro para Ônix.

Chegamos ao pensionato quase na hora do almoço.
No meu quarto, coloquei a caixa dentro da tampa, a areia dentro da caixa e Ônix sobre a areia. Ela compreendeu imediatamente. Cheirou, cavou um buraquinho com suas minúsculas patinhas, virou-se, olhou para o lado recatadamente e fez o xixizinho inaugural do tamanho de uma tampa de garrafa. Depois olhou para a rodelinha molhada, preocupada, cheirou e começou a puxar areia para cima até cobri-la completamente. Cheirou novamente, aprovou satisfeita e olhou para mim docemente, como só os gatinhos pequenos sabem fazer. Novamente senti a comunicação, o carisma.
Peguei-a no colo, cativada.
— Ah! Que gatinha educada você é, Ônix. ÔNIX! Você é Ônix, ouviu?
Ela, muito atenta parecia aceitar.

Coloquei-a na cama, enrodilhada no cobertor, depois de verificar que não tinha uma única pulga. Limpinha e cheirosa como um bebê.

Fomos almoçar e separei disfarçadamente um pouquinho de comida para ela, num copo. Ninguém percebeu. Comeu tranqüilamente.
Na padaria da esquina consegui um copo de leite. No dia seguinte, quando voltei da faculdade, comprei uma escova só para ela que, asseadíssima, já havia “tomado seu banho.” Eu trocava sua areia antes que começasse a cheirar. Jogava fora a “milanesa” que aparecia ali todos os dias. E trazia leite e comida. Esse foi todo o trabalho que ela deu.
As vinte e uma pensionistas se encantaram e ajudavam. Vigiavam a chegada da faxineira e Ônix era cuidadosamente levada para outro quarto, seu banheiro embrulhado e levado para um outro e sempre ficava alguém com ela enquanto eu estava no refeitório ou na faculdade.

As freiras não perceberam. A faxineira não percebeu.
Ônix crescia, alegre e brincalhona, uma criaturinha encantadora. Mas, um mês depois vi que precisava levá-la para Itapetininga. Faria isso no próximo fim de semana. Eu sabia que não seria aceita no ônibus, nem no táxi. Outro obstáculo.
Arrumamos uma sacola de palha, forramos com uma blusa de lã fina e macia, cobrimos com outra, mas o taxista descobriu no final, com o miado que ela soltou. Ficou meio bravo e disse que eu não conseguiria viajar com ela, que a Viação Cometa descobriria e não deixaria. Plantou-me o maior medo!

Comprei a passagem e entrei no ônibus, tremendo, mas disposta a ir até o fim. Alea jacta est!Agora ela e eu estávamos só por minha conta e fui sentar lá no último lugar. Iríamos enfrentar cinco horas de viagem, pois naquele tempo, depois de Sorocaba, a Raposo Tavares era de terra. E ela nunca ficara presa.

Nas primeiras horas tudo correu bem, mas no final Ônix queria sair da sacola, ir ao banheiro, andar pelo ônibus, não sei. Só sei que começou a miar. Pedi ajuda ao rapazinho sentado ao meu lado, de uns dezesseis anos e a quem eu tinha contado tudo. Ele começou a cantar desafinado. Ela miava, ele cantava. Comecei a apertar de leve a carinha dela com meu casaquinho de ban lon para abafar os miados. O rapazinho cantava.

O motorista desconfiou e começou a olhar para trás. Fiquei apavorada, pois todo mundo disse que eu seria posta para fora do ônibus com gata e tudo. O rapaz cantava em falsete. O motorista se contorcia lá na frente. Comecei a cantar também, mas nossas músicas não combinavam e todos começaram a rir. Tinha um velhinho que estava furioso e me fulminava com o olhar. Ele sabia... Ônix miava, eu cantava, o rapaz desafinava de propósito, eu apertava mais um pouco.
Mas afinal chegamos. Ufa!!! Ônix estava quieta. Agradeci muito ao rapaz, peguei a sacola com Ônix e corri até o banco da praça em frente. Abri a sacola e retirei o casaco. Ônix estava molinha e não acordava. Quase morri de susto.
— Meu Deus! Matei a coitadinha? Ônix! Ônix! Acorda, queridinha! Ônix, não faz isso comigo, por favor, acorda! Soprei seu focinho, sacudi suas patinhas flácidas, acariciei — Ônix! Gatinha! Pretinha! Meu Deus, não a deixe morrer, por favor! Colei o ouvido em seu coraçãozinho e estava batendo fraquíssimo, mas estava viva. Criei alma nova.
— Ah, obrigada, meu Deus! Obrigada!
Ela devagarinho começou a voltar a si, mas muito molinha ainda. Coloquei-a com cuidado dentro da sacola e voei para casa. Um, dois, três, quatro quarteirões, corri feito louca. Mamãe ia dar um jeito, Ônix ia ficar boa! Cheguei esbaforida chorando e assustando a todos. Entreguei a gatinha à Mamãe e suas mãos mágicas e compassivas, abençoadas, devolveram a vida e a saúde ao meu bichinho querido que quase matei... Demos-lhe água, leite e muito amor. Ela sobreviveu, cresceu e tornou-se uma charmosa panterazinha negra de olhos de esmeralda.

domingo, setembro 02, 2007

Rebecca 7 meses

Mas eu sou mesmo uma gatinha!