Uma Grande Paixão – IV
Na tentativa de recuperar o irrecuperável romantismo dos primeiros tempos.
A primogênita, Carlota, morena clara como a mãe, os mesmos cabelos negros e fartos, ligeiramente ondulados, era uma criança bonita e meiga, doce e quieta como o pai. Estava então com três anos.
Leopoldina, a segunda, um ano mais nova, lourinha muito clara como o pai, passaria por verdadeira alemãzinha na própria Alemanha. Mas herdara o temperamento forte da mãe e a personalidade correta e severa do avô materno, Antônio.
Anna e Gustavo brigavam e se reconciliavam. Inúmeras vezes. Seria mais certo dizer que ela brigava com ele e sempre pelo mesmo motivo: ciúmes. E dizia coisas nesses momentos que ele não esqueceria, embora ficasse calado. Ela o provocava e se exasperava pela atitude fechada do marido. Queria que ele respondesse alguma coisa, qualquer coisa, mas ele baixava os olhos e nada respondia. Queria que ele negasse, que ele dissesse que a amava como antes. Queria que ele a tomasse nos braços e a beijasse, a aninhasse e pegasse seu rosto entre as mãos grandes e carinhosas, como antes... Mas, quanto mais ela brigava, mais ele se fechava.
Foi em meio a essas tempestades que fui concebida.
Suponho que ele ainda sentia alguma coisa por ela. Suponho também que ela às vezes saía para espairecer e que voltava tentando provocar os ciúmes dele, talvez falando sobre homens que a teriam admirado e com quem teria conversado. Mas de uma coisa tenho certeza: ela não conseguiria trair o homem que amava acima de tudo. Nenhuma mulher faz isso. Não cabe outro homem num coração de mulher que ama até à loucura.
A gravidez foi penosa e difícil com toda essa alternância de sentimentos negativos e positivos. Se os bebês escutam e sentem tudo dentro da barriga, devo ter ficado bem insegura lá dentro e assustada também. A existência do lado de fora possivelmente não teria me parecido muito atraente.
Gustavo apreciava muito a família dos tios de Anna, Pedro e Hermínia. Gostava também de seus filhos e, principalmente de Eva, a filha mais velha. Tio Pedro, fotógrafo, chamado na cidade de “Pedrão Retratista”, era o irmão mais moço de meu avô materno, Antônio, que era professor e diretor do Grupo Escolar de Morro Azul.
Gustavo pensava em Eva depois de cada briga com Anna. Não havia dúvida, somente Eva o compreendia. Ela era possuidora de um raro dom, o de saber ouvir as pessoas com toda a alma. Ela olhava nos olhos de quem estava falando, fazendo com que cada um se sentisse o único ser no mundo. Ela o escutava e só com ela ele conseguia falar sobre seus problemas. Se isso se transformou em amor, não sei. É possível. E talvez dos dois lados. O que sei é que isso, olhos nos olhos, é mais irresistível do que qualquer paixão, pois acaba se tornando em uma entrega de almas.
Anos mais tarde, Eva me falava sobre Gustavo com muita doçura. Talvez ela o tenha amado sem esperança, ou talvez, tenha sido correspondida. Não há como penetrar os segredos das pessoas. Entre as coisas que ela me dizia quando eu já estava com uns doze anos, é que ele fora o melhor dos homens, além de ter sido o mais belo que já vira. Aliás, isso era unânime nas duas famílias. Dizia-me também que sua prima Anna era a mulher mais fascinante e dramática que conhecera e que sempre sentira grande admiração por ela. Eva, diretora de escola, tinha um timbre de voz alto e forte, de comando, mas quando falava de Gustavo, sua voz transformava-se em suaves entonações de sonho e nostalgia, que em minha inocência, eu não percebia.
Mas Anna, pobre Anna, começou a mostrar sinais inequívocos de estar perdendo a noção de realidade. À medida em que a gravidez atingia os últimos dias e ela via refletir-se no espelho a imagem inchada e pouco atraente de uma mulher desconhecida, ciúmes doentios a enraiveciam, transformando-a na pior das companhias para o marido cada vez mais calado, que foi se afastando dela a cada dia mais e se enclausurando num poço de silêncio até a cessação completa do amor.
Mas... e essa criança indesejável que ia nascer, nesse ambiente horrível? O que faria com ela? Não a queria, era fruto do fim de um amor. Mas as outras... Não poderia deixar suas filhinhas! Como fazer para ficar com elas?
Resolveu dar uma escapada até Morro Azul para conversar com Tio Pedro e Tia Hermínia, pedir uma orientação. Recomendou à empregada que cuidasse bem de Anna e das pequenas e saiu logo pela manhã de uma terça-feira, para voltar no mesmo dia.Tomou a jardineira lenta e sacolejante pela estrada de terra, demorando duas horas e meia pelo caminho que hoje percorremos em cinqüenta minutos. Ia preocupado e triste, cenho franzido, fundos suspiros levantando seu amplo peito, mas lá no fundo uma esperança de não sabia o quê.
Anna ouviu quando ele se levantou, ouviu-o falando baixinho com a empregada e depois a porta da rua rangendo. Ele saiu... — pensou ela — Para onde? E, súbito, um medo irracional a possuiu, medo de perdê-lo. Não, isso não podia acontecer! Ela morreria, sim morreria... Ela o amava, ainda mais do que antes. E ele também, não podia ser diferente! Brigavam porque se amavam. Ou será que não? Será que ele não a amava mais? Ela sufocou, num espasmo de medo que se transformou em terror. O que estava acontecendo com ela? Com ele? De repente lhe veio à mente torturada a figura da prima sorridente olhando para ele e, principalmente os olhos dele presos nos da prima... E ela gritou:
— Nãããão! Nãããão! Nããããããão!
A empregada apareceu correndo:
— O que foi, D. Anna!!!? A senhora está bem?? O que a senhora tem? Ah, meu Deus, é o bebê? Já vai nascer?
Anna conseguiu se controlar. O bebê. É verdade, o bebê. — Não... não é nada... estou bem... estou bem... Não, não é o bebê. Onde está meu marido?
— Ele disse que foi a Morro Azul, conversar com os tios... — respondeu a moça, enquanto via a transformação da patroa, o medo, ou... qualquer coisa assustadora nos olhos dela. — D. Anna, o que a senhora tem? Quer que chame o médico? Por favor, D. Anna, deite-se um pouco. D. Anna, D. Ana! Calma, D. Anna, por favor. Oh meu Deus, o que eu faço?
As crianças apareceram na porta do quarto, abraçando-se, as mãozinhas na boca, os olhos enormes de pavor. A mãe andava de um lado para o outro segurando a barriga, respirando fundo e olhando para cima, clamando a Deus.
Carlota começou a chorar baixinho e Dina, mais corajosa se adiantou:
— Mamãe? Mamãe?...
Anna parou de andar e olhou para a filha de dois anos e meio como se não a visse ou não a conhecesse, a mente inteiramente tomada pela figura graciosa da prima. Demorou um tempo a voltar à realidade.
A empregada pensou: — Meu Deus, ela está enlouquecendo... E o marido não está... Anna falava baixinho e andava de um lado para o outro: Tia Hermína... Tio Pedro... Não vão permitir! Não vão permitir! Tamanha desgraça! É isso! Eles não vão... Não podem, não podem! Ah... Quero morrer! Quero morrer...
E caiu, desmaiada.
Quando Gustavo chegou, às quatro da tarde, o médico tinha vindo, sedara-a e ela estava dormindo. A empregada contou tudo e ele ficou preocupadíssimo. A empregada dissera que Anna parecia estar enlouquecendo. Ele foi procurar o médico, ouvindo deste que sua mulher precisava ser internada. Recomendou uma clínica psiquiátrica em São Paulo, logo depois que o bebê nascesse.
Ele voltou depressa para casa. As crianças... A imagem tocante das pobrezinhas tão assustadas, Dina abraçando e protegendo a irmã mais velha parecia uma coisa irreal. Carlotinha se calara e não havia o que a fizesse falar. Seus olhos grandes aprisionavam toda a tristeza do mundo. Dina, ao contrário, parecia estar mais crescida, mais velha do que seus dois anos e meio...
Na manhã do dia seguinte, 24 de março de 1943, às 7:10 eu vim ao mundo. Um mundo triste demais e entrei nele calada. Contou minha mãe que não me separei da bolsa e da placenta, só com a cabecinha de fora. Ela ficou de cócoras na cama para me proteger, enquanto meu pai corria a chamar a parteira.
Anna não sabia ainda que sua vida já estava traçada pelo médico antiquado, que um futuro medonho a aguardava e nem imaginava que seu sofrimento ainda não atingira o ápice...