Juventina
Vestida de Noiva em 1910
Mamãe contava que enquanto papai estava empregado na Sorocabana, as coisas corriam normalmente. Ela cuidava da casa, dos filhos que iam nascendo, cozinhava e confeccionava as roupas para todos. Mas quando ele ficou sem aquele emprego, a situação ficou muito difícil mesmo. Mamãe era parcimoniosa nesses comentários, como se eles revolvessem suas feridas e eu não me encorajava a aprofundá-los. Por isso sei tão pouco. Mas em uma tarde cálida dos anos 50, em que ela pretendia costurar, chamou-me para enfiar a linha na agulha da máquina. Em seguida sentei-me a seu lado e iniciei minhas perguntas. Desde quando costurava, porque, etc..
Foi quando me contou que costurara e bordara quase a vida toda e que para isso fora mais preparada, e que esse era o trabalho de que mais gostava.
— ... e quando seu pai (meu tio-avô Jango) saiu da Sorocabana, — aqui ela suspirou, e nesse instante senti em seu tom de voz uma pontinha antiga de leve ressentimento — chegamos a passar extremas necessidades, até fome.
— Nossa, mamãe! Verdade?
— Foi muito... embaraçoso.
Ela pousou o cotovelo na velha Singer e apoiou o queixo no polegar, o indicador nos lábios, olhando para um passado distante por alguns segundos longos e carregados de emoção.
Eu esperava atenta e interessada.
Nessa única vez ela me falou daqueles dias em que papai procurava outro trabalho, nada encontrava e ficava irritado e nervoso. Foi durante a Primeira Guerra e tudo estava difícil. Começou a dizer que nunca mais queria ser empregado de ninguém, que iria fazer outra coisa e fazer acontecer isto e aquilo. E em casa já quase nada havia para comer e as crianças tinham fome.
— Houve um dia — respirou fundo e seus olhos se umedeceram — em que tive de mandar a Esther, com três para quatro anos, à casa de uma vizinha e amiga bem na hora do almoço para que pudesse ser convidada para almoçar.
Menos uma boca para comer o pouco que restara. Imaginei com espanto o quanto, em sua formação rígida e virtuosa, deve ter-se sentido envergonhada.
— E a Edna?
— A Edna era mais forte. Sempre foi a mais forte. Não quis ir.
— E os outros? — O Leônidas ainda mamava, mas meu leite estava rareando e já estava grávida do José. Foi nesse dia que decidi que bastava e anunciei que costuraria para fora, a preços baixos. Minha vizinha se encarregou de espalhar a notícia e logo começaram a aparecer as primeiras clientes.
E então ela sorriu, com a lembrança. — Esta máquina amiga trabalhou dia e noite e não parou por muitos anos, até a Edna se formar e começar a ajudar a sustentar a casa.
— E papai?
— Seu pai fez muitas coisas, mas nada que desse muito dinheiro. E nunca mais teve um salário fixo. Realmente o que entrou de dinheiro foi mais pela minha costura. E como eu precisava cobrar pouco para conseguir clientes prontamente, vivemos ainda muito tempo com bastante dificuldade.
Sempre grávida e a casa se enchendo de filhos, mamãe não tinha nem dia, nem hora para descansar. Sua máquina Singer rodava o dia todo e, muitas vezes, a noite toda, para dar conta do trabalho, vestindo muitas famílias da cidade.
Assim foram vivendo, as crianças nascendo; o José, depois a Belinha, a Santa e a Pique, a sétima.
O parto da Pique, prematuro, aconteceu numa fria madrugada de outubro, no ano de 1926, com inverno tardio, em que mamãe estava trabalhando em vestidos de festa, em cima do prazo. Como todos os outros, Pique nasceria em casa, com ajuda da parteira, dali a dois meses. No sétimo mês, mamãe não afrouxou o trabalho, mas naquela madrugada começou a sentir-se tão exausta, que percebeu assustada que já estava em trabalho de parto. Mal deu tempo de mandar chamar a parteira que, quando chegou, o bebê já nascera.
— Mas que pequetitinha! — disse esta.
Pequetita foi o apelido da nenezinha, que media um palmo e se chamou Maria Isabel. Mamãe forrou com algodão uma caixa de sapato, enrolou muito bem o pinguinho de gente num cobertorzinho, deixando uma abertura para pingar o leite na boquinha, gota a gota.
A parteira balançava a cabeça e vaticinava que a criança não aguentaria.
Mamãe olhou feroz para ela e disse:
— Veremos! — e voltou para suas costuras.
Aos trinta e seis anos, mamãe estava muito magra e aparentava mais de cinquenta. Perdera toda a sua beleza física, mas não a sua chama guerreira.
A filha mais velha, Edna, sempre ajudara em tudo. Era como uma formiguinha. Desde os cinco anos, subia numa cadeira ao lado do fogão de lenha para mexer a comida, cuidava da irmãzinha Esther e do bebê Leônidas, o melhor que podia. Aos sete anos, teve osteomielite numa das pernas e pequenas lascas de osso lhe escapavam pela ferida. Papai tinha de levá-la à escola carregada. Eu nunca soube como se curou. Sempre foi aluna brilhante e aos catorze já dava aulas particulares para ajudar nas despesas.
Penso que foi por essa época que papai adquiriu uma grande câmera fotográfica, daquelas de caixão, com pano preto e tudo e tornou-se um “retratista” profissional. Só não era um "lambe-lambe" porque fotografava em casa, onde atendia as pessoas que o procuravam. Essas pessoas eram, em sua maioria, gente humilde, fazendeiros e seus empregados. Adquiriu uma verdadeira paixão pela fotografia.
Nos anos 40 mudaram-se para a Rua Campos Salles, numa casa grande e antiga, pertencente ao senhor Zico Strasburg, de quem alugaram por mais de dez anos. O pé direito era muito alto. Quartos, tinha apenas dois, que eram enormes. O maior foi dividido ao meio por dois grandes guarda-roupas. Cabia todo mundo e ainda sobrava muito espaço.
A sala de visitas era grande, mas a de jantar era maior, com uma mesa comprida. A cozinha com fogão de lenha, um banheiro e o quarto dos fundos, o "quarto escuro". E um vasto quintal com dois níveis, que ia até a rua de baixo.
Nessa casa passei minha infância até os nove anos. Foi lá que tive minhas primeiras lições de fotografia. Papai reservou para revelar as fotos um quartinho ao lado da cozinha, que vedou inteiramente com papel preto. Era o temível “quarto escuro”, palco de alguns cascudos e castigos que recebi quando me demorava na rua...
O “estúdio fotográfico” de papai era no próprio quintal, mesmo ao ar livre, junto à parede do lado de fora da sala de jantar. Quase encostada a essa parede, colocava a banqueta da penteadeira da mamãe, pendurava por trás um cobertor como fundo, acomodava sua máquina e pronto. Ali foram fotografadas todas as pessoas da família, crianças e adultos, além dos clientes.