sábado, fevereiro 28, 2009

Cem Anos... Capítulo IV

Pique, Santa e Belinha e a boneca horrorosa, em frente ao cobertor velho.



Pique e Belinha de cara amarrada. Por que será? Pelo visto, ninguém gostou da pose...
A minúscula Pique sobreviveu, até hoje, contra todos os prognósticos da parteira. Sem hospital, sem incubadora fechada, nem meio asséptico, num frio de rachar, sorvendo o leitinho materno gota a gota... Tendo por berço não uma manjedoura, mas uma caixa de sapato forrada de algodão.
E uma verdadeira Madona como mãe. A Mãe de Jesus que me perdoe a comparação. Até me atrevo a pensar que Nossa Senhora gostou do que eu disse. Cá entre nós, até pode mesmo ter gostado, se Os conheço bem, a Ela e a Seu Filho... Acho que estou influenciada pelo blog do Zeca, Proseandocomdeus, em que começamos a acreditar que podemos conversar com Deus assim, como eu e você.
Há outra história que mamãe contava dos tempos de pobreza, sobre o Leônidas e o José.
Dizia ela que os dois meninos tinham quase o mesmo tamanho, e quando chegaram à idade escolar, não havia dinheiro para comprar dois pares de sapatos, então ela comprava um só. Amarrava o dedão de cada um e eles iam para a escola calçando um pé do único par. Esse fato não a magoava e ela o contava divertida. Mas de repente lembrou-se de que numa dessas o Leônidas voltando para casa pegou um temporal a meio do caminho e resolveu infantilmente vir andando pela enxurrada. E não pode ver o caco de vidro que lhe cortou o pé horrivelmente. Daí em diante o coitadinho teve de ir para a escola com o pé amarrado por causa de um machucado de verdade.
Contava também que o José e a Santa não queriam estudar. O José queria ser operador do projetor de filmes do Cine São Pedro. Era o grande sonho dele. Não queria nada com o magistério, mas isso ia frontalmente de encontro à determinação de mamãe de formar todos os filhos professores, custasse o que custasse. (Porque professores e não engenheiros ou médicos ou advogados? Acho que ela tomava como exemplo meu avô Tonico, que a essas alturas já era diretor de Escola).
E a Santinha, cujo nome na realidade era Maria José, gostava muito de comer e queria ser cozinheira. Também não queria estudar, mas mamãe morreria antes de deixar que isso acontecesse... Arranjou uma boa vara de marmelo e ia ameaçando os dois recalcitrantes até o Instituto de Educação Peixoto Gomide, de onde voltava resmungando “Pois sim! Cozinheira! Co-zi-nhei-ra!! Onde já se viu? Operador de filmes! Esses dois vão ver só uma coisa! Hum!”
E sobre papai, o que tenho a dizer?
Papai foi o sonho de qualquer criança. Não me importava se ele trabalhou ou deixou de trabalhar, se ele ganhou ou deixou de ganhar dinheiro, se ele perdeu o emprego porque esmurrou o chefe da estação ou se o perdeu por qualquer outro motivo.
Para mim, ele era perfeito.
Imaginem o que uma criança de cinco anos, naquele tempo, gostava? Numa cidade que era deste tamanhinho e que não tinha quase nada para se fazer, exceto o Jardim da Infância, os dois cinemas a que só se ia aos domingos, as árvores do quintal para subir, as galinhas para atormentar, a cachorrinha para correr atrás, a gata e seus gatinhos para acariciar, a cabrita e o peru do Natal e o bilboquê. E os livros, claro, os livros de princesas e fadas-madrinhas, de bruxas más e de dragões, de maçãs envenenadas e de lindas carruagens que viravam abóboras.
Mas nada, nada mesmo me preparou para o que vou contar.
Imaginem o assombro e alegria esfuziante que senti quando, num fim de tarde, papai abriu o portão lá da rua de baixo e me chamou para ver uma surpresa. Fui correndo, curiosa. E o que vi?
Um carrinho duplo, de pipoca de um lado e algodão doce do outro!
Não é o sonho de uma criança pequena? E era nosso, papai falou! Anoitecia e papai ficou um tempão fazendo algodão doce cor-de-rosa só para mim, o quanto eu quis. Nunca, em toda a minha vida, senti-me mais rica, nababesca mesmo. Nenhum castelo de rei, nenhuma coroa de rainha, nenhuma lâmpada de Aladim teria para mim o mesmo encanto e valor.
Naquela noite nem dormi, pensando em como eu era feliz! E nas minhas coleguinhas do Jardim da Infância, que iriam morrer de inveja... Principalmente aquela Suelizinha que me mordera até tirar sangue... Um carrinho de algodão doce no meu quintal!
No dia seguinte, papai me levou com ele até a frente do Ginásio particular e tive a incrível experiência de ajudá-lo a vender algodão doce e pipoca para os estudantes. Mal demos conta!
E eu inchada de orgulho dele e do "nosso" carrinho. Ele me ensinou a contar o dinheiro e fazer o troco e voltamos para casa cheios de moedas.
Papai era bravo, sim, mas nunca comigo. Gritava sim, é verdade, mas não comigo. Eu o seguia todo o tempo, no "quarto escuro" da luz vermelha, vendo-o revelar os fimes, mergulhando o papel nos ácidos, adivinhando as fotos antes que surgissem completamente; e depois mergulhando-as na água várias vezes com aquele movimento sinuoso dos pulsos; e por último pendurando as fotos lá em cima, uma ao lado da outra. Maravilha das maravilhas. Fazer surgir alguma coisa do nada, pensava eu. Seguia-o quando ia buscar água na fonte da Vila Rosa, num garrafão de vidro, quando ia comprar lã na Casa Barth, que pertencia aos pais do Nelson. Quando voltava para casa e se dirigia à sua recente aquisição, a máquina redonda de fazer meias sem costura. Adorava vê-lo colocar a lã e começar a rodar aquela máquina impossível e a meia ir saindo, a lã rodando, rodando...
"Sem costura" era maneira de dizer, porque depois a mamãe tinha de costurar "o calcanhar e a ponta da meia, mas só isso", dizia papai.
Papai também era desenhista e inventor. Um verdadeiro Professor Pardal, que fazia coisas de sucata e eu era sua assistente, a Lampadinha.
No próximo capítulo.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Cem Anos... Capítulo III

Juventina

Vestida de Noiva em 1910


Mamãe contava que enquanto papai estava empregado na Sorocabana, as coisas corriam normalmente. Ela cuidava da casa, dos filhos que iam nascendo, cozinhava e confeccionava as roupas para todos. Mas quando ele ficou sem aquele emprego, a situação ficou muito difícil mesmo. Mamãe era parcimoniosa nesses comentários, como se eles revolvessem suas feridas e eu não me encorajava a aprofundá-los. Por isso sei tão pouco.
Mas em uma tarde cálida dos anos 50, em que ela pretendia costurar, chamou-me para enfiar a linha na agulha da máquina. Em seguida sentei-me a seu lado e iniciei minhas perguntas. Desde quando costurava, porque, etc..
Foi quando me contou que costurara e bordara quase a vida toda e que para isso fora mais preparada, e que esse era o trabalho de que mais gostava.

— ... e quando seu pai (meu tio-avô Jango) saiu da Sorocabana, — aqui ela suspirou, e nesse instante senti em seu tom de voz uma pontinha antiga de leve ressentimento — chegamos a passar extremas necessidades, até fome.
— Nossa, mamãe! Verdade?
— Foi muito... embaraçoso.
Ela pousou o cotovelo na velha Singer e apoiou o queixo no polegar, o indicador nos lábios, olhando para um passado distante por alguns segundos longos e carregados de emoção.
Eu esperava atenta e interessada.
Nessa única vez ela me falou daqueles dias em que papai procurava outro trabalho, nada encontrava e ficava irritado e nervoso. Foi durante a Primeira Guerra e tudo estava difícil. Começou a dizer que nunca mais queria ser empregado de ninguém, que iria fazer outra coisa e fazer acontecer isto e aquilo. E em casa já quase nada havia para comer e as crianças tinham fome.
— Houve um dia — respirou fundo e seus olhos se umedeceram — em que tive de mandar a Esther, com três para quatro anos, à casa de uma vizinha e amiga bem na hora do almoço para que pudesse ser convidada para almoçar.
Menos uma boca para comer o pouco que restara. Imaginei com espanto o quanto, em sua formação rígida e virtuosa, deve ter-se sentido envergonhada.
— E a Edna?
— A Edna era mais forte. Sempre foi a mais forte. Não quis ir.
— E os outros? — O Leônidas ainda mamava, mas meu leite estava rareando e já estava grávida do José. Foi nesse dia que decidi que bastava e anunciei que costuraria para fora, a preços baixos. Minha vizinha se encarregou de espalhar a notícia e logo começaram a aparecer as primeiras clientes.
E então ela sorriu, com a lembrança. — Esta máquina amiga trabalhou dia e noite e não parou por muitos anos, até a Edna se formar e começar a ajudar a sustentar a casa.
— E papai?
— Seu pai fez muitas coisas, mas nada que desse muito dinheiro. E nunca mais teve um salário fixo. Realmente o que entrou de dinheiro foi mais pela minha costura. E como eu precisava cobrar pouco para conseguir clientes prontamente, vivemos ainda muito tempo com bastante dificuldade.
Sempre grávida e a casa se enchendo de filhos, mamãe não tinha nem dia, nem hora para descansar. Sua máquina Singer rodava o dia todo e, muitas vezes, a noite toda, para dar conta do trabalho, vestindo muitas famílias da cidade.
Assim foram vivendo, as crianças nascendo; o José, depois a Belinha, a Santa e a Pique, a sétima.
O parto da Pique, prematuro, aconteceu numa fria madrugada de outubro, no ano de 1926, com inverno tardio, em que mamãe estava trabalhando em vestidos de festa, em cima do prazo. Como todos os outros, Pique nasceria em casa, com ajuda da parteira, dali a dois meses. No sétimo mês, mamãe não afrouxou o trabalho, mas naquela madrugada começou a sentir-se tão exausta, que percebeu assustada que já estava em trabalho de parto. Mal deu tempo de mandar chamar a parteira que, quando chegou, o bebê já nascera.
— Mas que pequetitinha! — disse esta.
Pequetita foi o apelido da nenezinha, que media um palmo e se chamou Maria Isabel. Mamãe forrou com algodão uma caixa de sapato, enrolou muito bem o pinguinho de gente num cobertorzinho, deixando uma abertura para pingar o leite na boquinha, gota a gota.
A parteira balançava a cabeça e vaticinava que a criança não aguentaria.
Mamãe olhou feroz para ela e disse:
— Veremos! — e voltou para suas costuras.
Aos trinta e seis anos, mamãe estava muito magra e aparentava mais de cinquenta. Perdera toda a sua beleza física, mas não a sua chama guerreira.
A filha mais velha, Edna, sempre ajudara em tudo. Era como uma formiguinha. Desde os cinco anos, subia numa cadeira ao lado do fogão de lenha para mexer a comida, cuidava da irmãzinha Esther e do bebê Leônidas, o melhor que podia. Aos sete anos, teve osteomielite numa das pernas e pequenas lascas de osso lhe escapavam pela ferida. Papai tinha de levá-la à escola carregada. Eu nunca soube como se curou. Sempre foi aluna brilhante e aos catorze já dava aulas particulares para ajudar nas despesas.
Penso que foi por essa época que papai adquiriu uma grande câmera fotográfica, daquelas de caixão, com pano preto e tudo e tornou-se um “retratista” profissional. Só não era um "lambe-lambe" porque fotografava em casa, onde atendia as pessoas que o procuravam. Essas pessoas eram, em sua maioria, gente humilde, fazendeiros e seus empregados. Adquiriu uma verdadeira paixão pela fotografia.
Nos anos 40 mudaram-se para a Rua Campos Salles, numa casa grande e antiga, pertencente ao senhor Zico Strasburg, de quem alugaram por mais de dez anos. O pé direito era muito alto. Quartos, tinha apenas dois, que eram enormes. O maior foi dividido ao meio por dois grandes guarda-roupas. Cabia todo mundo e ainda sobrava muito espaço.
A sala de visitas era grande, mas a de jantar era maior, com uma mesa comprida. A cozinha com fogão de lenha, um banheiro e o quarto dos fundos, o "quarto escuro". E um vasto quintal com dois níveis, que ia até a rua de baixo.
Nessa casa passei minha infância até os nove anos. Foi lá que tive minhas primeiras lições de fotografia. Papai reservou para revelar as fotos um quartinho ao lado da cozinha, que vedou inteiramente com papel preto. Era o temível “quarto escuro”, palco de alguns cascudos e castigos que recebi quando me demorava na rua...
O “estúdio fotográfico” de papai era no próprio quintal, mesmo ao ar livre, junto à parede do lado de fora da sala de jantar. Quase encostada a essa parede, colocava a banqueta da penteadeira da mamãe, pendurava por trás um cobertor como fundo, acomodava sua máquina e pronto. Ali foram fotografadas todas as pessoas da família, crianças e adultos, além dos clientes.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Cem Anos de Memórias - Cap II

Locomotiva a vapor 326 1927
Capítulo II


Era um moço alto e simpático e isso foi tudo o que ela disse. Mas a maneira como ela falava nele, embora em raras ocasiões, deixava entrever lá bem no fundo, um sentimento de nostalgia. Eu, adolescente, em plena fase romântica, sempre puxava o assunto e ela sorria imperturbável e tornava a explicar que apenas o encontrava de passagem, a caminho de alguma incumbência doméstica. Nunca trocaram nem uma palavra.
— Mas como ele era, mamãe?
— Ora, era um moço bonito, não sei mais nada, nunca conversamos. Ele só passava e cumprimentava.
— Mas porque ficou só nisso? A senhora não gostava dele, nem um pouquinho?
— Nem dá pra saber. Foi só... isso mesmo, me olhava, sorria, curvava-se e tirava o chapéu, só isso.
— Mãezinha, conta! A senhora gostou dele, não foi? Ela parava o crochê e suspirava.
— Eu tinha ficado noiva e nem sabia.
— Como assim!?
As mãos voltaram a trabalhar no crochê.
— Uma tarde voltei para casa e encontrei na sala meu padrinho e um outro moço que me vira na rua e estava lá pedindo minha mão: o Jango. Meu padrinho já aceitara o pedido.
— E a senhora não o conhecia?
— Não, nunca o tinha visto antes daquele dia. Ela levantou o crochê, esticou para todos os lados, pousou as mãos e comentou serena:
— Naquele tempo era assim...
— E o que a senhora sentiu? Gostou dele?
— Não existia isso de gostar ou não. A família era autoridade, não havia como não obedecer. — E o Fernando Rios? O que aconteceu com ele?
— Ele se casou com outra e muito tempo depois eu soube que morreu.
E isso foi tudo o que ela disse. Nenhum detalhe, nenhuma explicação. O que poderia ter sido um pretendente esfumou-se numa barreira imposta pelas famílias.

Mamãe e papai se casaram em 1910 e tiveram sete filhos.
Ele foi louco por ela a vida toda. Mas acho que não foi correspondido na mesma medida. E a vida deles não foi nada fácil, com tantos filhos e problemas financeiros.
Só agora me pergunto por que o tio-avô Jango não estudou mais, sendo tão inteligente como era. Só fez até a sexta série, assim como mamãe. Mas parece que ele não tinha uma profissão. O que sei é que trabalhou por muito tempo para a Estrada de Ferro Sorocabana, como “foguista” das locomotivas a vapor, apanhando o carvão e jogando para dentro da grande fornalha — um sem número de vezes — e acionando os monitores de água para a alimentação contínua da caldeira. Era um trabalho estafante, que lhe arrancava litros de suor, mas ele gostava muito. Tudo isso ouvi nas conversas lá em casa. Mas houve um problema qualquer com o chefe da estação. Papai brigou com ele e o esmurrou, perdendo o emprego, ou se demitindo, não sei. Nunca mais quis trabalhar como empregado, mas falarei nisso depois.
Dessa fase ferroviária de sua vida, papai conservou um grande amor pelas locomotivas, tanto aquelas em que trabalhou quanto as mais modernas. Ele tinha verdadeiro orgulho dessas máquinas e de ter movimentado aqueles pesados monstros de ferro.
Quando eu tinha cinco anos, fui com ele a São Paulo, de trem. Ele me fazia ouvir o apito, me colocava na janela para que pudesse ver toda a composição nas curvas e vibrava com minhas exclamações de alegria e com minha curiosidade. E me fez acompanhar o balanço dos vagões, murmurando:

— Veja, o trem dança! Veja como a gente oscila de um lado para o outro. E preste atenção, a locomotiva fala!
— É? E o que ela diz?
— Ela reclama... Ouça... Tem um ritmo: Muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo...
Só então eu percebia a queixa da máquina. Era verdade! Ela falava mesmo: Muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo, muita carga, pouco fogo...
E nós dois íamos recitando e oscilando, por grande parte da viagem, acompanhando o tchique tchique, tchique tchique ritmado da locomotiva.
Ainda agora, ao me lembrar de tudo aquilo, sinto o cheiro da fumaça no vento quente e as partículas de carvão que estalavam em meu rosto e ombros para fora da janela, e o calor das mãos fortes de papai me segurando cuidadosamente pela cintura.
Eu gostava demais dele.
E agora, gostariam de dar um passeio numa locomotiva italiana, junto com o maquinista e o foguista para verem como é? Acessem o link e... vamos lá!
http://www.youtube.com/watch?v=gFJe4YA4wxE&feature=related

Mas se quiserem, como eu, ver três vídeos maravilhosos no You Tube, vamos fazer juntos essa viagem em três maravilhas de ferro que o Brasil não teve:
http://moda.kiiweb.com/tecnologia/locomotivas-a-vapor/

domingo, fevereiro 15, 2009

Mais de Cem Anos de Memórias

Não há como voltar à infância sem começar pela história de Juventina e de João. Que lástima não ter eu perguntado mais detalhes sobre a vida deles. Dele, sei quase nada e dela, sei tão pouco.
Mamãe nos contava, durante os serões na cozinha, à beira do fogão de lenha em noites frias de Julho, retalhos de sua vida, entre o bule de café quente e a panela de pipoca. Inúmeras vezes faltava energia elétrica na cidade. Era quando nos reuníamos em frente ao fogão, à luz das chamas para ouvir histórias, que eram contadas e recontadas, sempre as mesmas, principalmente aquelas de fantasmas e aparições: Santa, Idalina, a empregada, Julinho e Zeca, dois irmãos de doze e onze anos que estavam hospedados em casa para estudar, e eu. “Mamãe, conta aquela das brasas...”
Mamãe não sabia nem o ano nem o dia de seu nascimento. Não sabia se havia ou não sido registrada. Calculava que tivesse nascido por volta de 1890 ou 1892. Nunca a ouvi falar de seus pais e apenas posso imaginar se mal os teria conhecido, ou se sequer se lembrava. Não sei se morreram ou se simplesmente entregaram as filhas. Imagino que eram pobres demais. Mas posso estar enganada sobre isso.
Juventina e sua irmã Maria foram criadas pelos padrinhos, ricos comerciantes de São Miguel Arcanjo, cidade minúscula a uns 50 km ao sul de Itapetininga. Coisa comum no século IX e começo do século XX, crianças crescerem nas casas dos outros. Mamãe dizia que a casa e a loja deles ocupavam todo o quarteirão. As filhas mocinhas estudavam francês, canto, tocavam piano e bordavam. Eram perfumadas e vestiam as sedas e rendas mais finas e seus vestidos e anáguas eram os mais bonitos da cidade e seus cabelos negros, compridos e brilhantes nunca haviam sido cortados. Ela adorava ouvir o frufru das sedas e sentir o perfume quando elas passavam.
Mas Juventina e Maria vestiam algodão grosseiro, como as criadas. Quando criança, sonhava poder ser como as filhas da casa, um dia.
Sua madrinha era despótica e irascível e tratava mamãe e a irmã como escravas, com muitas obrigações e nenhum direito.
A história que mais me impressionava era a das brasas.
Quando ficou muito doente, a madrinha obrigava Juventina, que na época tinha apenas cinco anos, a dormir na soleira da porta de seu quarto, para que cuidasse dela e corresse para trocar as brasas do braseiro sob sua cama, várias vezes durante a noite, antes que esfriassem totalmente. Numa dessas noites geladas, alguma das criadas havia tirado do lugar a pá de pegar brasas. A menina voltou ao quarto e perguntou como poderia pegar as brasas sem a pá. E a mulher gritou impaciente: Pegue com as mãos!
E foi o que ela fez. Pegou um punhado de brasas e correu de volta para o quarto, sem se atrever a se queixar da dor horrível. As brasas grudaram em suas mãozinhas e quando ela tentava arrancá-las a pele saia junto. E a madrinha ria, divertida. O braseiro foi colocado no lugar e a criança voltou para seu canto na soleira da porta, as palmas das mãos em fogo, mordendo os lábios de dor, contendo os soluços, as lágrimas escorrendo.
Mamãe contava isso sem rancor, apenas relatava o fato. Mas nós ficávamos horrorizadas. Ouvi essa história muitas e muitas vezes e perguntava sempre por que ela não tinha ido para longe de tal madrinha e ela respondia que não tinha para onde ir, que a madrinha lhe fazia um enorme favor de criá-la e vesti-la e que naquele tempo não havia a menor possibilidade de uma criança, principalmente do sexo feminino, desobedecer a um adulto.
“Criança não fala, Criança não interrompe conversa de adulto, Criança não tem querer, Criança come tudo que está no prato, Criança obedece”, Criança tem de ser comportada”... “Meninos não choram, Meninas não brincam com meninos, Meninos não brincam com bonecas, Meninas não pulam, não correm, não transpiram, não espirram, não gritam, não falam alto, não riem alto, não sobem em árvores, não saem à rua desacompanhadas”, não isto e não aquilo... Era grande a lista de nãos.
Enfim, meninas tinham de ser modelos ideais e meninos só não podiam chorar e brincar com bonecas para não se tornarem “mariquinhas”...
Depois que a madrinha morreu, a vida melhorou para todos na casa, pois o padrinho era um homem bom. Se ele se casou novamente, não sei. As duas irmãs foram para a escola pública e tiveram educação básica, até a sexta série, aprendendo além das matérias comuns ainda hoje, o francês, o grego e o latim. Nas escolas daquele tempo a palmatória era a lei. Mas mamãe e a irmã jamais precisaram dela.
Mamãe se tornou muito boa na costura e no bordado e era encarregada da roupa da casa do padrinho. Sua irmã, Maria, casou-se aos treze anos com um viúvo muito mais velho, que era quase um avô para ela. Ainda uma criança, brincava no quintal com as bonecas das filhas do marido.
Mamãe cresceu e se tornou uma moça muito bonita. No decorrer de seus dezoito anos, graças ao convívio com as jovens donas da casa, ganhara um brilho de doce refinamento que recobria um estofo de coragem e fortaleza.
Entretanto, chegara à cidade um jovem professor chamado Fernando Rios. Era um moço bem apessoado e ela percebia o interesse dele, no chapéu tirado à sua passagem, na curvatura respeitosa e no olhar sério e discreto que a acompanhava.

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Serenô


Às vezes, não sei de onde nem por quê, me assalta uma gostosa nostalgia, daquelas que fazem a gente sorrir feliz e iluminar o dia. A cabeça pende um pouco para o lado, o olhar se suaviza e se fixa no vazio, as mãos se unem frouxas no colo e o espírito volta a um tempo mágico em que eu era uma criança de dois anos, deitada na rede no colo da Santa, que cantava para eu dormir, a música que mais me encantava:

Serenô

Serenô, eu caio, eu caio,
Serenô deixa cair
Serenô da madrugada
Não deixou meu bem dormir

Minha vida, ai ai ai, é um barquinho, ai ai ai,
Navegando sem leme e sem luz
Quem me dera, ai ai ai, que eu tivesse, ai ai ai,
O farol dos teus olhos azuis...

Serenô, eu caio, eu caio,
Serenô deixa cair
Serenô da madrugada
Não deixou meu bem dormir

Vivo triste, ai ai ai, soluçando, ai ai ai,
Recordando o amor que perdi
O sereno, ai ai ai, é o pranto, ai ai ai,
Dos meus olhos que choram por ti...

Eu ficava imaginando um barquinho pequenino navegando à noite em águas tranquilas e mornas e no céu negro, uns olhos enormes, lindos e muito azuis, soltos no céu, sem rosto, só os olhos, sendo faróis para o barquinho. E gostava muito, tanto que me esquecia de dormir. A coitadinha da Santa, que era uma jovem de vinte e dois anos, tinha esse encargo para poder sair com as amigas, era uma condição imposta por mamãe. Então ela cantava e sua voz era muito bonita. Cantava várias músicas, mas essa era a que eu mais gostava, por causa do barquinho e dos olhos azuis.

O canto lindo me embalava e eu acabava fechando os olhos e relaxando. A Santa então, ralentando a música e já quase sussurrando, ia se levantando da rede, louca para sair. E eu abria os olhos sonolentos e chamava: Santa!... Mamãe levantava a cabeça de seu crochê.

E a Santinha suspirava e voltava para a rede com um exasperado "Aaai!... Não dormiu... ainda?!... Menina cabulosa!..." e eu pedia: "O barquinho"... E o canto recomeçava, cheio de paciência:

"Serenô"...

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Sobrinha em Malta

Malta

Olá Tia, tudo bem? Estou gostando aqui de Malta, tudo muito diferente.
Esta ilha tem mais de 7 mil anos de história, foi encontrada pelos Fenícios. Muitos povos já realizaram varias guerras para conquistar esse ponto estratégico no mediterrâneo. Ate mesmo Napoleão esteve aqui.

Aqui se fala Maltês, língua derivada do árabe (cerca de 40% é árabe). Mas a o alfabeto é o latino. O inglês é segunda língua e britânico. Desde o jardim de infância se aprende as duas linguas. Porém os malteses falam italiano também, pois a Sicilia é muito perto e as antenas parabólicas conseguem pegar o sinal por ser bastante forte. Todo mundo se despede aqui dizendo: ciao! aqui pega a RAi uno, due e tre.Todas as coisas praticamente são importadas aqui. Margarina, queijo, frutas e vegetais e etc.A comida típica aqui é carne de coelho. Aff!O mar aqui é deslumbrante, diferentes cores.Aqui é inverno e está fazendo frio. O clima aqui agora está bem parecido com Curitiba e muda de repente, num momento faz sol e de repente muda para chuva de granizo e esfria, depois volta o sol. Anoitece por volta das 5 da tarde.Mas no verão, dizem que aqui é outra Malta. Agosto é o mês mais quente, por volta de 40º. E anoitece por volta das 9:30.Passei o natal e o réveillon aqui, período em que as pessoas vestem preto e são bem formais e não estouram fogos de artifício. (réveillon). Festas são reservadas em hotéis. Everything is inside.O Natal é bem importante, mesmo no começo de janeiro ainda se ouvia musicas natalinas.Me disseram que no verão se estouram fogos quase que todos os dias, comemoram-se santos e etc. Agora estão cansados, rs...Tinha uma ideia bem diferente quando cheguei aqui. Achei que todos eram católicos e nem se usava jeans. Mas não é nada disso, os jovens são iguais em todos os lugares agora, depois da internet.Malta possui muitos templos históricos.
Mas a agua aqui é um grande problema, pois é retirada do mar e precisa ser dessalinizada e isso encarece bastante.A ilha possui por volta de 70km de extensão e por volta de 400 mil habitantes. Ao norte e nordeste da ilha (onde estou) fala-se mais inglês, ao sul se fala mais maltês.Aqui não tem ligação a cobrar e só tem duas operadoras de celular: Go e vodafone, onde se pode escolher o numero que quiser. Eu escolhi a minha data de nascimento... rsssAqui é engraçado por ser tudo pequeno, fazenda aqui está mais pra pomar do que outra coisa.Nas minhas aulas tenho descoberto muitas coisas sobre outros países tb, pois minhas aulas de inglês são basicamente discussions. Talk, talk and talk. Ah! estou aprendendo italiano também, estou estudando por conta, pra poder me comunicar conhecer italianos legais e melhorar o currículo.Ho capito ma parlo poco. Muitas palavras do italiano são iguais, a gramática que é o problema.
Mas estou gostando de tudo aqui. Penso que agora esclareci um pouco mais sobre Malta para você.
Claro que tem muito mais coisas! Blue Grotto, Popeye Village, onde foi filmado o filme do Popeye e muito, muito mais.


Beijos

Ana Cristina.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

De Quanta Terra Um Homem Precisa? - Final

Léon Tolstói
CAPÍTULO VIII

Alguns a cavalo, outros em charrete, partiram. Pakome e seu criado seguiram na charrete, levando a enxada. Chegaram à estepe quando a aurora avermelhava o céu. Subiram uma colina, apearam dos cavalos e das charretes e se reuniram no alto.
O chefe aproximou-se de Pakome e mostrou o campo, dizendo:
— Até onde a vista alcança, a terra é nossa. Escolha a parte que quiser.
Os olhos de Pakome brilharam. O solo virgem era perfeito para o cultivo do trigo, a terra era preta e toda plana, coberta de vários tipos de capim alto.
O chefe tirou o gorro e colocou no chão, dizendo:
— Aqui é o ponto de partida. Quando voltar aqui, toda a terra que tiver percorrido será sua.
Pakome pôs o dinheiro sobre o gorro do chefe e tirou o casaco, ficando só com a camisa e a túnica. Ajustou o cinto, pendurou nele uma bolsa com pão e água, ajeitou as botas e pegou a enxada, pronto para começar a caminhada. Por um momento ficou pensando na direção a tomar, mas como toda a terra era boa, decidiu ir para o nascente. Voltando o rosto para o oriente, esperou o sol despontar. “Não devo perder um minuto e, além disso, é mais fácil caminhar enquanto está mais fresco”, pensou. Mal surgiram os primeiros raios de sol Pakome iniciou a jornada, levando a enxada ao ombro.
Começou a andar em passo constante, nem lento nem rápido. Percorrido um quilômetro, parou, cavou um buraco e pôs um monte de capim bem visível ao lado e continuou a andar. Animado, apressou o passo e, percorrido um bom trecho, cavou outro buraco. Virou-se e viu a colina bem delineada à luz do sol, as pessoas no topo e o brilho das rodas das charretes. Calculou ter andado já uns cinco quilômetros. Sentiu calor. Tirou a túnica, atirou-a sobre o ombro e prosseguiu. Andou outros cinco quilômetros. O calor aumentava. Pakome olhou o sol e viu que era hora do almoço.
“Já fiz um quarto da jornada, mas ainda é cedo para começar a voltar. Vou tirar as botas”, pensou.
Sentou-se para tirar as botas, pendurou-as na cintura e continuou a andar. Era mais fácil andar descalço. “Andou outros cinco quilômetros e virou para a esquerda. Esse lugar é excelente, seria pena perdê-lo. Quanto mais ando, melhor é a terra.” Continuou a andar em linha reta e, ao olhar para trás, mal dava para ver a colina. Os homens pareciam formigas e o brilho das rodas sumia na distância.
“Ah, já andei muito nessa direção, é hora de voltar. Além disso, estou suado e tenho sede.” Parou, cavou um buraco maior e pôs o monte de capim. Desatou a garrafa, bebeu um gole de água e virou para a esquerda. Continuou a andar; o capim era muito alto e fazia mais calor.
Pakome começou a sentir cansaço. Olhou o sol e viu que era meio-dia. “Preciso descansar”, pensou. Sentou-se, comeu um pedaço do pão e bebeu água, mas não se atreveu a recostar, com medo de adormecer. Recomeçou a caminhada. A comida havia refeito suas forças, mas o calor aumentava cada vez mais. Apesar de sentir cansaço e sono, continuou andando, dizendo a si mesmo que eram poucas horas de sofrimento em troca de muitos anos de boa vida.
Andou muito tempo naquela direção e já ia virar novamente para a esquerda quando avistou um vale. “Aqui o linho deve crescer bem; seria pena perdê-lo”, pensou. Rodeou o vale, cavou um buraco para marcar do outro lado e só então mudou de direção. Olhou para a colina. O calor tornava o ar trêmulo e mal podia distinguir os homens no topo.
“Ah, marquei dois lados muito compridos; preciso fazer o terceiro mais curto”, pensou, acelerando o passo. O sol estava a meio caminho do horizonte e ele só havia percorrido dois quilômetros. Faltavam dez para chegar ao lugar de onde saíra. “Meu terreno vai ficar irregular, mas agora preciso seguir em linha reta. Mesmo assim, já tenho bastante terras,” Apressou-se a cavar um buraco e seguiu em direção à colina.

CAPÍTULO IX
Estava exausto. Andava com dificuldade, os pés descalços doíam e as pernas fraquejavam. Precisava descansar mas, se parasse, não chegaria à colina antes do pôr-do-sol. O sol não esperava. Descia pouco a pouco, a caminho do horizonte. “Meu Deus, será que fui longe demais? E se eu não chegar a tempo?” Olhou para a colina e para o sol. Ainda tinha muito que andar e o sol já estava baixo.
Pakome continuou a andar. Apesar da exaustão, caminhava cada vez mais rápido. Ao ver que ainda estava muito longe, começou a correr. Jogou fora a túnica, as botas, a garrafa de água e o gorro. Levava apenas a enxada, que usava como cajado. “Que farei? Fui ambicioso demais! Não chegarei a tempo e vou perder tudo!” O medo lhe tirava o fôlego. Pakome continuou a correr. As roupas suadas grudavam na pele, a boca estava seca. Arquejava como um fole, o coração martelava, já não sentia as pernas. Teve medo de morrer de cansaço. Apesar do medo de cair morto, não conseguia parar de correr. “Se paro agora, depois de tudo que andei, vão me chamar de idiota”, pensava. Continuou a correr e, quanto mais perto chegava, mais alto ouvia os gritos e assovios dos homens na colina. Estimulado pelos gritos, reuniu as últimas forças e continuou.
O sol se tornara grande, vermelho, e já alcançava o horizonte. Pakome estava bem perto agora. Via os homens acenando, animando-o a chegar. Já via o gorro de pele de raposa no chão, o dinheiro e o chefe, sentado ao lado, segurando a barriga com as duas mãos. Nesse momento lembrou-se do sonho e pensou: “Tenho muitas terras, mas será que Deus vai me permitir viver nelas? Acho que tudo está perdido, não vou conseguir chegar!”
Pakome viu o sol, na linha do horizonte, começando a desaparecer. Juntando todas as forças que restavam, correu tão depressa que o corpo se curvava para a frente e as pernas mal conseguiam acompanhar. Estava a ponto de cair. Quando alcançou o pé da colina, o sol sumiu e Pakome pensou, aterrorizado: “Tudo o que fiz foi em vão!” Ia parar de correr mas viu que os homens ainda acenavam, animando-o com assovios e gritos. Então compreendeu que, embora estivesse escuro aqui em baixo, em cima da colina ainda se via o sol. Redobrou o esforço e subiu. A primeira coisa que viu foi o gorro com o dinheiro. Ainda era dia lá no alto e ao lado do gorro estava o chefe sentado, segurando a barriga com as duas mãos, dobrando-se de rir. Lembrando-se do sonho, Pakome sentiu tamanho horror que as pernas fraquejaram e ele caiu de bruços, alcançando o gorro com os braços estendidos.
— Que homem competente! — disse o chefe. — Quantas terras conseguiu!


O criado veio ajudá-lo a se levantar e viu o sangue escorrendo-lhe da boca. Pakome estava morto.
Os homens mostravam pesar pela morte de Pakome. O criado pegou a enxada, cavou um buraco e enterrou o patrão. Dois metros, da cabeça aos pés, era a terra de que Pakome precisava.

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

De Quanta Terra Um Homem Precisa?

Quadro de Klodt, Mikhail Konstantinovich

CAPÍTULO VI

Estavam em plena discussão quando surgiu um homem com um gorro de pele de raposa. Todos ficaram de pé, em silêncio.
— É o chefe — disse o intérprete.
Pakome mandou buscar o melhor traje e uma caixa de chá na charrete para oferecer ao chefe. O homem aceitou os presentes e os colocou a seu lado. Os bashkirs conversaram com ele longo tempo. Depois de ouvi-los, o chefe fez um gesto para que se calassem e dirigiu-se a Pakome em russo:
— Pode escolher a terra que mais lhe agrade; temos muita.
“Como fazer?”, pensou Pakome. “Se não fizermos um contrato, poderão dizer depois que a terra não é minha e tomá-la de volta.”

— Agradeço suas palavras, mas as terras são muito extensas e só preciso de uma parte. Vejo que seu povo é bom e me concede essas terras, mas nossas vidas não dependem de nós, dependem de Deus e talvez um dia seus filhos as peçam de volta. Assim, talvez seja melhor fazer um contrato definindo qual é a minha parte.
— Tem razão — disse o chefe.
— Ouvi dizer que um comerciante comprou terras de seu povo e recebeu um escritura. Gostaria de fazer a mesma coisa — disse Pakome.
O chefe compreendeu o que ele desejava.
— Podemos fazer isso. Temos um escrevente na cidade que prepara a escritura e põe os selos necessários.
— Qual é o preço? — perguntou Pakome.
— Nosso preço é um só: mil rublos por dia.
Pakome não entendeu.
— Que medida é essa? Quantos acres tem um dia?
— Não sabemos calcular — disse o chefe. — Vendemos a terra por dia. Toda a terra que puder percorrer a pé em um dia será sua pelo preço de mil rublos.
— Pode-se percorrer muita terra em um dia — disse Pakome, surpreso.
— Pois será toda sua — o chefe respondeu rindo. — Mas há uma condição: se não voltar no mesmo dia ao ponto de partida, perderá o dinheiro.
— Como vou marcar o lugar?
— Ficaremos no ponto de partida até você voltar. Pode levar uma enxada e cavar buracos pelo caminho, colocando um monte de capim ao lado de cada buraco. Depois faremos um sulco com o arado, ligando os montes de capim. Toda a extensão marcada será sua, desde que retorne ao lugar de onde saiu antes que o sol se ponha.
Pakome estava encantado. Resolveram marcar a terra no dia seguinte. Conversaram mais um pouco, bebendo kumis, comendo carneiro e tomando chá até o anoitecer. Acomodaram Pakome em coxins de plumas e se dispersaram, combinando se reunir de madrugada, para chegar ao lugar antes do nascer do sol.

CAPÍTULO VII

Pakome deitou-se, mas não conseguiu dormir, pensando nas terras. “Vou percorrer uns cinquenta quilômetros, pois nessa estação o dia é tão longo quanto a noite. É muita terra! Posso arrendar a pior parte aos camponeses e cultivar os melhores campos. Compro duas juntas de bois e contrato dois empregados. Semeio uns duzentos e cinquenta acres e deixo o resto para pasto.”
Passou a noite em claro mas, pouco antes da madrugada, adormeceu e teve um sonho. Sonhou que estava deitado na tenda dos bashkirs e ouvia alguém rir do lado de fora. Foi ver quem era e encontrou o chefe segurando a barriga com as duas mãos, dobrando-se de rir. Pakome aproximou-se e perguntou:
— De que está rindo tanto?
Viu então que o chefe era o negociante que tinha ido à sua casa contar sobre as terras. Mas quando lhe perguntou: “Chegou aqui há muito tempo?” viu que não era aquele, mas o primeiro viajante que viera além do Volga, e logo também já não era o viajante, mas o próprio diabo, com chifres e patas de bode. Estava parado, às gargalhadas, ao lado de um homem morto que vestia apenas uma camisa e não tinha sapatos. Olhou para o morto e viu que era ele mesmo. Despertou horrorizado. “A gente sonha cada coisa!”, disse consigo. Viu pela porta aberta que começava a clarear. “Preciso acordar os outros, pois já é hora de partir”, pensou. Levantou-se, chamou o criado que dormia na charrete, mandou que atrelasse os animais e foi acordar os bashkirs.

— É hora de ir à estepe marcar as terras — disse a eles.
Os homens se reuniram para esperar o chefe. Beberam kumis e ofereceram chá, mas Pakome mal podia esperar.
— Se temos que ir, vamos logo, pois já é dia — disse ele.


domingo, fevereiro 01, 2009

De Quanta Terra Um Homem Precisa?

KUMIS
CAPÍTULO IV

Ao chegar, inscreveu-se numa grande aldeia, ofereceu uma bebida aos funcionários e arrumou a concessão. Para as cinco pessoas de sua família deram cento e cinquenta acres em campos diferentes, sem contar as pastagens. Pakome construiu uma casa e comprou animais. Só de concessão, possuía agora três vezes mais terras do que antes e muito mais férteis. Sua vida estava dez vezes melhor. Podia ter tanto gado quanto quisesse.
A princípio, enquanto se ocupava na construção da casa e das instalações, Pakome estava feliz, mas logo que se acostumou à nova vida voltou a insatisfação.
No primeiro ano, semeou trigo nas terras da concessão e teve boa colheita. Mas queria semear mais e nem todos os campos serviam para o trigo. Naquela região plantava-se o trigo apenas em alguns campos que são cultivados por um ou dois anos, e então era preciso deixar o solo se recuperar. Muitos aldeões queriam ter esses campos, mas não havia bastante para todos e as disputas eram comuns. Os mais ricos os cultivavam e os mais pobres os arrendavam aos comerciantes para cobrir os impostos. Pakome arrendou-os por um ano e a colheita foi boa. O campo ficava uns quinze quilômetros distante da aldeia e Pakome notou que os camponeses dali viviam em granjas e enriqueciam. “Se eu tivesse terras aqui poderia ter uma casa de campo”, pensou. Daí por diante, só pensava em comprar terras naquele lugar.
Viveu assim por três anos. Teve excelentes colheitas e ganhou muito dinheiro. Mas estava cansado de arrendar terras, pois os camponeses disputavam os melhores campos e ele precisava estar sempre atento para não perder as oportunidades. Arrendou um campo em sociedade com um comerciante mas, depois de arado, perdeu-o numa demanda. “Se a terra fosse minha, não perderia meu trabalho nem me rebaixaria diante de ninguém”, pensou Pakome.
Andando à procura de terras para comprar, Pakome encontrou um mujique arruinado disposto a vender mil e trezentos acres a preço muito baixo. Depois de muita negociação concordou em pagar mil e quinhentos rublos, metade à vista e metade a prazo.
Um dia um comerciante parou na casa de Pakome para dar ração aos cavalos. Pakome ofereceu-lhe chá e o comerciante contou que vinha do território bashkir, onde havia comprado treze mil acres por mil rublos. Pakome ficou interessado.
— Basta fazer amizade com os velhos. Gastei uns cem rublos em presentes, roupas, tapetes, chá e aos que bebiam dei bons vinhos. Comprei as terras por sete copeques o acre — disse o comerciante mostrando o contrato de venda.
— A terra fica ao longo de um riacho, é especial para o trigo. Leva-se mais de um ano para percorrer todo o território dos bashkirs. É um povo ingênuo, vendem as terras quase de graça.
“Por que gastar mil e quinhentos rublos em mil e trezentos acres e contrair uma dívida se lá, pelo mesmo dinheiro, posso comprar sabe Deus quantas terras?”, disse Pakome a si mesmo.

CAPÍTULO V

Pakome informou-se sobre o caminho, disposto a conhecer aquelas terras. Deixou a casa aos cuidados da família e partiu acompanhado de um criado. Ao passar pela cidade comprou chá, vinho e outros presentes, como o comerciante aconselhara. Percorreram mais de trezentos quilômetros e no sétimo dia chegaram ao acampamento dos bashkirs.
O lugar era realmente como o comerciante dissera. O povo vivia em tendas na estepe, ao longo de um riacho. Não cultivavam a terra nem comiam pão. O gado pastava na estepe e os potros ficavam reunidos junto às tendas. Duas vezes por dia traziam as éguas para a ordenha e com seu leite preparavam o kumis. As mulheres faziam queijo e os homens passavam o tempo tomando chá e kumis, comendo carneiro e tocando flauta. Eram alegres e saudáveis; passavam todo o verão em festa. Eram muito ignorantes e nem sabiam falar russo, mas acolhiam com prazer os viajantes.
Ao ver Pakome vieram recebê-lo, trazendo um intérprete. Pakome disse que vinha comprar terras e eles ficaram muito contentes. Levaram-no a uma tenda grande, onde o convidaram a se sentar em tapetes e coxins de plumas e trouxeram chá, kumis e carneiro. Pakome tirou da charrete os presentes e os ofereceu a todos. Conversaram alegremente entre si e disseram ao intérprete para traduzir.
— Mandam dizer que apreciam muito os presentes e querem saber como podem retribuir. Temos o costume de dar ao hóspede o que ele pedir. Diga-nos o que deseja e teremos prazer em atender seu pedido.
— No lugar onde vivo não há muitos campos férteis, as terras estão esgotadas, disse Pakome. Aqui, vejo campos bons para o cultivo. Gostaria de comprar terras.
O intérprete traduziu as palavras de Pakome e os homens discutiram animadamente. Pakome não entendia o que diziam, mas via que estavam satisfeitos, gritavam e riam. Por fim, o intérprete disse:
— Mandam comunicar que, em troca dos presentes, darão com prazer toda a terra que desejar.
Os homens voltaram a conversar entre si e Pakome perguntou o que falavam.
— Uns dizem que é preciso consultar o chefe; acham que não podem decidir sem o consentimento dele — disse o intérprete. — Outros pensam que não é preciso, já que seguimos os costumes.

CAPÍTULO VI

Estavam em plena discussão quando surgiu um homem com um gorro de pele de raposa. Todos ficaram de pé, em silêncio.
— É o chefe — disse o intérprete.