O apito do trem
O fora que levei e a dor que senti ficaram-me encravados como flechas lancinantes de Cupido nesse ano de 1957.
A caixa de tesouros foi aberta todas as noites e cada pequeno presente, cada folha seca com nossos nomes, cada rosinha-chorão seca, cada bilhete de amor, cada foto dele, tudo foi acariciado, manuseado e umedecido por lágrimas de frustração durante muitos e muitos meses também durante o ano seguinte.
João deixara a cidade para cursar a oitava série em São Paulo e meu coração inchado e dolorido por mais dois anos ainda...
O pai do João era funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana e seu filho voltava de trem, nos fins de semana. E todos os sábados, às 5:00h da tarde, eu esperava o apito do trem que trazia o meu amor perdido .
Piuííííííí... Piuíííííííí... (intervalo) e logo: Piuíííííííí... Piuííííííí... Tchik tchik tchik tchik tchik tchik tchik tchik tchik... tchik... tchik... tchik... tchiiiiiiiiiiihhhhh...
Então eu ficava imaginando o lindo João carregando sua maleta, descendo do vagão, andando pela velha estação, subindo a rua em rampa, dobrando à esquerda, andando os 200 metros até sua casa, que pertencia aos funcionários da EFS, chegando em casa, recebido pela mãe que o esperava na porta, abraçando e sendo abraçado por todos...
E eu, já prontinha, de banho tomado e com o melhor vestido, coração disparado feito doido, olhada severamente pela mamãe (que mal disfarçava a sua tristeza provocada pela minha tristeza durante toda a semana...), engolia o jantar de qualquer jeito para poder ir ao cinema com Maria Lúcia e Lydia, na esperança de vê-lo...
E uma noite, uma noite gloriosa, ele sentou-se bem atrás de nós e nos deu montes de balas de hortelã e Paulistinhas... Que filme foi? Imaginem se me lembro... Nem pensar... Tudo sumiu, tudo se eclipsou pela magnética presença dele ali atrás. A felicidade doía de tão grande... Até hoje, essas balas me lembram daquela noite.
Na saída, ele continuou ao meu lado e disse que não conseguia esquecer "minha meiguice"... que ainda gostava de mim, talvez ainda mais, mas que não podíamos mais namorar por causa de D. Anna... Jamais me ocorreu contrariar o destino.
Foi a primeira vez que pensei que "não há dor maior que a dor do amor"... quando é impossível ou frustrado... Comecei a compreender Romeu e Julieta...
Nunca voltamos a namorar e continuei interessada por ele durante dois anos, principalmente por causa da constante presença dele nos sábados, sempre se sentando atrás de mim no cinema, nunca ao meu lado. Sempre cobrindo-me de balas ou de rosinhas-chorão, alimentando meu sentimento, não me deixando esquecê-lo.
Um dia resolvi que bastava. O tempo cura tudo e eu já estava ficando cansada desse jogo de "amor impossível". Comecei a descobrir que nada é impossível para quem ama e que ele, na realidade, não gostava de mim coisa nenhuma, só amava a idéia de que uma menina bobinha gostava dele sem que precisasse fazer muito esforço...
E decidi que estava na hora de deixar de ser bobinha e começar a olhar para os lados...