Nietzsche
Então hoje pequei, absolva-me...
Hora do almoço: a Cida me traz uma tigelinha de mandioca frita, derretendo por dentro e crocantíssima por fora, dourada e perfeita, daquelas de comer gemendo...
Adivinhe se fui buscar mais...
Vou ter de fazer penitência? Quantos Pai Nossos?
─ Talvez a morte de meu sogro, em Julho de 1973, tenha me abalado, ou talvez eu estivesse trabalhando muito, não sei. Além de dar minhas 34 aulas semanais de Educação Artística num Colégio Estadual do Sumaré, nos períodos da tarde e da noite, ainda pegara uns desenhos em bico-de-pena para fazer em casa depois da aula e acabava desenhando madrugada a dentro.
Em outubro desse mesmo ano, meu bebê Rodrigo estava numa barriga de 5 meses e já louco para nascer...
No meio da noite, levei o maior susto ao sentir algo errado. Tivemos de acordar a médica às 3 da madrugada. Ela veio prontamente. Mas seu diagnóstico foi o pior:
─ Ah... minha filha, este bebê você já perdeu...
─ Não quero! por favor, faça alguma coisa! Por favor, por favor! Eu chorava, em desespêro.
─ Acho que não vai dar, você está com uma hemorragia forte e dois dedos de dilatação. Um feto de 5 meses passa facilmente por aí... Não chore, você pode ter outro...
Mas eu não queria saber. Chorando muito, segurei a mão da doutora, implorando:
─ Não quero outro, quero este! Por favor, FAÇA ALGUMA COISA!
Vendo que não me convencia, a boa doutora Adelaide resolveu contemporizar:
─ Está bem, vamos ver... vamos ver... Se você ainda não o perdeu, vamos ver se consegue segurar... Mas não posso garantir nada, está entendendo? Vou aplicar hormônios e você terá de ficar na cama até o final, acha que consegue?
─ Faço qualquer coisa, qualquer coisa! Mas me ajude, me ajude!
A doutora aplicou as injeções, recomendou listas de cuidados, receitou alguns remédios e foi para casa, deixando-nos com muita vontade de ajudar o Rodriguinho a ficar mais calmo. Ficamos acordados até amanhecer, Nelson e eu, com nossas mãos em minha barriga, falando para o filhinho o quanto o amávamos, e que era para o queridinho ter paciência, muita paciência, e ficar ali dentro mais um pouquinho de tempo, só mais um pouquinho, bem calminho... "Papai quer você, meu filhinho, mamãe quer você, fique aí bem quietinho, fique... Nós estamos aqui com você, filhinho, queridinho"... O Nelson nessas horas de crise tem um jeito incrível.
O bebê já tinha esse nome, Rodrigo, desde os dois meses de gravidez, por causa do tio-avô de oitenta e poucos anos, por quem eu me tomara de amores.
Conheci o Tio Rodrigo Terra no velório de meu sogro. Minha sogra me pediu para ir avisá-lo e se ele quisesse, para trazê-lo em meu carro. Ele morava num bairro meio afastado, numa casa muito simples. Atendeu uma moça negra, muito bonita. Tio Rodrigo ainda nem sabia que "seu" Jair havia morrido e que estava sendo velado na Igreja do Rosário.
Mas em segundos estava pronto. Ao entrar no carro, deixou escapar um "Ai!".
─ Que foi, tio?
─ Ah, não é nada, é só a minha faca que me picou, essa danada... E tirou da cintura uma enorme faca de uns trinta centímetros...
─ Tio Rodrigo... O senhor não vai deixar a faca na sua casa?
─ Mas de jeito nenhum, menina! Onde já se viu um tropeiro desarmado? E ria gostosamente do meu susto.
Ajeitou a faca e já foi contando sua vida de tropeiro de burros. Que levava os burros do Mato Grosso até o Rio Grande de Sul e vice-versa, que essas viagens duravam muitos meses e que tinha as paradas certas nas fazendas para descanso dele e dos animais. Chegando à Igreja, "animou" o velório à antiga, contando piadas e "causos" que aconteceram a ele durante sua vida aventurosa. Não dava para a gente ficar chocada com a animação dele em pleno evento tão triste.
Fiquei fascinada por ele. Não desgrudei os olhos dele nem por um minuto. No dia seguinte, depois do enterro, que foi muito emocionante, por ver o quanto a cidade toda gostava de seu Jair, eu disse ao Nelson:
─ Se o bebê for menino, será Rodrigo, como seu tio avô.
D. Zélia não gostou muito:
─ Você tem coragem, Nice? O tio Rodrigo foi um homem muito fora de série, foi terrível! Era valentão, ninguém tinha coragem de enfrentá-lo, teve não sei quantas mulheres, e agora mesmo, você viu a mulher que mora com ele? Uma moça de trinta anos e... negra!
─ Pois eu gosto dele mais ainda, acho isso tudo o máximo, ele é o próprio bandeirante, e meu filho vai levar o nome dele.
Rodrigo ficou na barriga até o final da gravidez, que foi bem difícil. E quando nasceu, no dia 25 de Fevereiro de 1974, loirinho e lindo, com 3.820g, encontrou do lado de cá uma mãe corujíssima.
Ontem ele fez trinta e quatro anos.
Parabéns, meu querido! Amo você de todo o meu coração.
Eu gostaria de ganhar na Loteria
Se ganhasse, o que faria?
Eu iria viajar...
Eu compraria um barco bem equipado
E com ar refrigerado e iria para o mar...
Durante um tempo ficaria numa ilha
Que teria já comprado e lá seria meu lar...
Ilha pequena de areia muito branca,
Água azul e transparente, onde iria me deitar...
O sol brilhante de lá não seria quente,
Bronzearia docemente, colorindo sem queimar...
Que bom seria se eu tivesse essa ilha
No centro de um mar imenso
Muito azul, no ar suspenso,
E pudesse lá ficar...
Nada é "nosso" nesta Terra.
Apenas conquistamos, por mais ou menos tempo, o direito de usar. Quando compramos uma casa e moramos nela, defendendo o território com unhas e dentes, temos a ilusão de que é "nossa", mas temos de pagar os impostos, a água e a energia elétrica que utilizamos, o gás etc.. Depois, deixamos em herança para os filhos que também pensarão que é "deles"...
Assim também quando compramos roupas, ou jóias, carro ou o que for. Mas, se um ladrão nos assaltar, "nossas" coisas mudam de dono... Se nos matar, tudo o que supúnhamos que tínhamos, ficará para outros. No Brasil, pensamos em malfeitores ou enchentes, mas em outros países, as catástrofes são incêndios, tsunamis, tornados, vulcões, tempestades.
Acho que por isso é que os hindus chamam esta vida de Maya, ilusão...
Descobri isso há vinte e tantos anos quando fui buscar meu filho adolescente que estava no apartamento de um amigo. Resolvi esperar dentro do carro. Era uma tarde quente e o sol de verão batia forte na rua linda e sossegada, próxima à Ponte Cidade Jardim, destacando as linhas elegantes do prédio, as altas grades de ferro ladeando o portão monumental, tudo muito classudo.
Lembro-me de ter ficado ali admirando o bom gosto arquitetônico do conjunto. O jardim era espetacular, patrulhado por dois seguranças de preto. Eu poderia ter entrado, fui convidada, mas preferi ficar ali em frente, olhando para o prédio sem defeito. Pensei estar segura, pois os dois musculosos de preto estavam andando de um lado para o outro logo atrás das grades. Na verdade, nem me ocorreu nada negativo.
Meu carro não tinha ar condicionado e as janelas estavam abertas. Meu filho custou para descer, mas eu não estava entediada, apenas distraída com a beleza toda. Foi quando senti por fração de segundo algo quente e macio no pescoço e a linda corrente de ouro com pingente que o Nelson me dera no último Dia da Mães foi puxada e levada. Simples assim. Nem entendi como. Saí do carro e vi lá longe o ladrão correndo à toda. Sumiu na virada da esquina antes que os dois seguranças pudessem sequer abrir o lento portão eletrônico. Era tarde. Minha joinha se fora... Já não me pertencia... Ainda fiquei matutando que os dedos do ladrão não me machucaram em absoluto. Ele provavelmente roía as unhas até o sabugo.
Voltando para casa, filosofei com meu filho sobre os destinos que "minha" jóia tomaria daí
do Lat. domnu por dominu, senhor
s. m., senhor de alguma coisa,
Roubar é fácil .
Comecei com galináceo
Depois fui roubar na rua,
Assaltar quem não recua,
Puxar bolsa de velhota ,
Dividindo co’a patota
Prá comprar umas pedrinhas...
Depois o ponto
Do semáforo na esquina ,
Dá prá juntar uma nota
Prá comprar a cocaína ...
À tardezinha ,
Do meio pro fim do dia
Vou fazendo uma boquinha
Que é prá força não faltar.
Passa a madame
No carango importado,
“Mora bem,” lá doutro lado
Desta nossa capital,
Dona bacana ,
De apartamento duplex,
De solitário e rolex,
Tudo muito desigual...
Depois o berro
Bem na frente da polícia
Que olha prá outro lado,
Eu não vou ficar parado
Dou metade pra “milícia”
Que me acoberta,
Quando prende solta logo,
Se não solta eu advogo
Prometendo “engraxar”...
Eu mostro a grana,
Sempre cumpro a promessa,
Me liberam bem depressa,
Vou de novo assaltar...
É o meu “trabalho”,
Tenho que manter família,
Tenho mulher tenho filha,
Tenho casa pra cuidar...
Quando perguntam
Por que não mudo de vida
Digo: não tenho saída
Pois quem vai me empregar?
De vez em quando
Topo um policial novato
Que me leva de imediato
Pro fundo do camburão.
Eu olho em volta
Procurando um conhecido,
Um sacana corrompido,
Que me livre da prisão...
Sempre aparece
Um polícia bem maneiro
Que diz: largue o biscateiro,
É companheiro de pensão!
Que me conhece,
Que sou meio alucinado,
Que sou cara perturbado,
Bagunceiro, não ladrão...
Então me soltam
Recomendando juízo,
Tô de volta ao “paraíso”
De roubar para comer...
Tudo mentira...
Gosto mesmo dessa vida,
Sou de fato alma perdida
Que não quer se converter...
Esta é do ano passado, saiu também de uma vez...
Um cofre nós todos temos
De bem guardados segredos
Que muito bem escondemos
Protegendo nossos medos.
Nossos medos são momentos
Que não devemos mostrar
Pois teremos julgamentos
Que nos irão infamar...
Um cofre nós todos temos
De bem guardadas razões
Razões para o que fazemos
Neste mundo de ilusões...
Razões por vezes tão puras
Que nos induzem a errar
E esses erros são agruras
Que queremos ocultar...
Um cofre nós todos temos
De bem guardados amores,
Amores só de esperanças,
De lágrimas ou de flores...
Apenas supor...